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30 Agosto de 2018

"Nico 1988": Filme relata o último ano da femme fatale

Se o termo “a beautiful mess” (“uma bela bagunça”, em tradução livre) tivesse uma versão personificada, teria o retrato de Christa Paffgen emoldurado entre as palavras. Ex-modelo, a cantora que marcou a banda The Velvet Underground para sempre é o foco do filme Nico 1988, drama biográfico que relata o último ano de sua conturbada vida. Seguindo a linha de rockstar com destino trágico e nebuloso, morreu precocemente aos 49 anos.
 
A história de Nico é fascinante. Desde criança foi arranhada por algo que poderia ser fatal: a Segunda Guerra Mundial, capítulo que deixou muitas marcas em sua memória. Nascida na Alemanha, ostentava grandes olhos azuis, um corpo esguio e madeixas loiras. Mas, para ela, a beleza doía e custava caro. Era uma mulher objetificada, o que a fez detestar a carreira de modelo e, depois, de atriz. Durante toda a juventude foi tratada ou como bibelô ou como deusa intocável, mas pouco como ser humana.
 
Por causa de Andy Warhol, Nico virou uma espécie de Twiggy do mundo do rock. Foi o artista da pop art que insistiu para que ela participasse do grupo vanguardista The Velvet Underground, ao lado de Lou Reed, Sterling Morrinson, Angus MacAlise e John Cale. Com uma voz ímpar, enfrentou o clube do bolinha -  que não a queria na banda  -  e cantou três músicas no que posteriormente se tornou um dos álbuns mais relevantes da história: The Velvet Underground & Nico, com uma banana desenhada por Warhol na capa.

A escolha de incluí-la no disco foi puramente comercial, mas a garota era talentosa, sabia vários idiomas, cantava bem e se envolveu na indústria musical. Nico conheceu muita gente nesse meio, como MickJagger, Iggy Pop, Bob Dylan e Jim Morrinson, com quem viveu um breve e inesquecível romance. Foi o líder do The Doors que a incentivou a escrever suas próprias canções, a traduzir seus sonhos em poesias melódicas. Dizem que a morte do cantor foi uma das profundas cicatrizes que ela carregou.
 
Nico foi dona de um som autoral que dificilmente consegue ser explicado ou entendido. É meio lírico, medieval e carregado de ressentimentos. Ao se lançar na carreira solo, a cantora pode contar com John Cale e Lou Reed no álbum de estreia, Chelsea Girl, o que justifica as semelhanças musicais com o Velvet Underground. Posteriormente, Cale participaria da produção de praticamente todos os seus discos, todos carregados de melancolia. Boa parte de sua obra chega a ser quase fúnebre, um som gótico por completo, especialmente na essência.
 
Susanna Nicchiarelli, diretora de Nico 1988:
 
"A música que Nico fazia era difícil, mas foi de longe uma das produções mais interessantes e intransigentes do período: ela criou um estilo único combinando pesquisa pessoal com soluções experimentais provocantes e ironia, sempre se recusando a se preocupar com a comercialidade de sua produção. Enquanto o fenômeno Disco Music explodia ao seu redor, ela continuou a compor obstinadamente aquelas atmosferas sombrias e perturbadoras que influenciaram radicalmente os movimentos gótico e da New Wave, e a maior parte da produção underground dos anos oitenta."
 
Com o tempo, a imagem doce e inocente que outrora carregava, a tal aura angelical, foi deixada para trás para dar lugar a uma figura sombria, amargurada, incompreendida e sufocada pelas angústias. Estava cansada do título de “femme fatale”, de não ser levada a sério como artista, de ser bela, de ser uma figura subestimada e ter que agir como um “quadro branco”. Numa entrevista, chegou a afirmar que seu único arrependimento era ter nascido mulher e não homem. Na nova fase que adentrou, pintou os cabelos claros de castanho e causou estranheza nos homens que a cercavam. Para eles, Nico estava “se enfeiando” e satisfeita com o que estava conseguindo. O abuso de substâncias ajudava nessa tarefa.
 
Afirmações masculinas desse tipo só provam o quanto a beleza de Christa sempre esteve em primeiro lugar. Era como se tivesse que ser a eterna musa dos homens babões, mas, do contrário, era uma pessoa que gostava de destruir sua própria imagem, praticamente se punindo por ter sido tão bonita e encantadora quando jovem. Apesar de notar os efeitos da droga, não acho que ela conseguiu ficar feia esteticamente, mas acho que sua alma obscura e desgostosa cumpriria tal papel.
 
No meio da trajetória toda, Nico também passou a sentir uma enorme culpa e saudade do filho Ari Boulogne. Na época, ela manteve a gravidez achando que iria se casar com o ator Alain Delon e, quem sabe, ter um final feliz. Mas ele nunca assumiu a criança. Por ser “muito louca para criá-lo”, Nico permitiu que ele vivesse na França na companhia e proteção de seus avós paternos. Porém, o laço entre mãe e filho nunca foi rompido. Eles se tornaram amigos, chegaram a viver juntos e Ari alimenta até hoje um grande fascínio pela mãe.
 
Mais do que uma “junkie de meia idade”, como já foi chamada, essa é uma mulher que teve traumas, um talento incompreendido, um fardo para carregar às custas de sua beleza, uma figura completamente desolada em sua própria pele. Sua trajetória é retratada primeiramente no documentário Nico Icon, dirigido por Susanne Ofteringer, lançado em 1995. Recomendo que vejam esse antes de pular para o filme.

Com estreia no Brasil dia 30 de agosto*, o filme Nico 1988 consegue ser fiel à muitas coisas que foram documentadas ao longo do tempo, tendo como base suas entrevistas e performances, fazendo uso de coisas que realmente saíram de sua boca. E duas mulheres fazem a magia acontecer na obra cinematográfica: a atriz dinamarquesa Trine Dyrholm (que empresta sua voz às músicas do longa) e a diretora Susanna Nicchiarelli.
 
É interessante que a narrativa consegue ser muito sensível sobre um pequeno grande fragmento de sua vida, mas sem julgar seus podres ou explorar a “triste história da mulher que ficou feia”. É um olhar feminino, empático e generoso sobre o que Nico se tornou. Um filme sincero, à sua altura em termos de competência, personalidade e intensidade. Não por acaso já foi premiado como o melhor na Mostra Orizzonti no Festival de Veneza.
 
Ao se transformar num “patinho feio”, a cantora se libertou o suficiente de todas as amarras que colecionou até chegar à velhice, quando embarcou a bordo de uma van numa turnê global de baixo custo. Em um trecho, Nico conta suas motivações para carregar consigo um gravador portátil e gravar sons específicos ao longo da vida. Buscando por algo muito peculiar, traduz em palavras poéticas o que tanto procurou: “o som da derrota”, o que, no final das contas, tanto embalou o resto de seus dias.
 
pesar de tudo isso e mais um pouco, gosto de pensar que Nico sobreviveu à si mesma, às suas imensas frustrações e desgostos. Morrer com quase 50 anos foi praticamente uma vitória para ela, embora no fundo exista um lamento de pensar que sua existência poderia ter sido mais plena e feliz.
 
Como a vida foi cruel com ela até mesmo na hora da morte, Nico morreu enquanto estava em Ibiza com o filho, finalmente sóbria após 15 anos de vício em heroína, em tratamento com metadona, e tentando ser mais saudável. Foi andar de bicicleta e não voltou. No meio do caminho teve insolação, caiu, bateu a cabeça e demorou a ser socorrida. Era uma pessoa tão obscura que a própria luz do sol a matou. Trágico.
 
Sua carreira tem sido revisitada nos últimos anos, numa tentativa da própria indústria se redimir. Nico influenciou artistas como Morrissey, Björk, Patti Smith, Elliott Smith e Henry Rollins. Ao mergulhar em sua história, é impossível ficar só molhando os pés na superfície. Algo te puxa para o fundo e quando você se dá conta, virou fã de tudo o que ela representa.
 
*O filme estará em cartaz em em 11 cidades e 18 salas do Brasil: São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba, Salvador, Fortaleza, Recife, Goiânia, Vitória, Santos e Niterói. Na semana seguinte chega em Porto Alegre e Belo Horizonte.
 
Veja mais em: Hypeness

 

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