Uma pesquisa recente realizada na cidade de Encantado, no Rio Grande do Sul, revelou disparidades nos registros de violência doméstica quando analisada a faixa etária das vítimas. O estudo, conduzido por Verônica Potrich no curso de Direito da Universidade do Vale do Taquari - Univates, aponta que, em 2022, apenas 4 das 50 ocorrências registradas foram feitas por mulheres com 60 anos ou mais, apresentando uma disparidade em comparação aos 46 registros realizados por mulheres com menos de 60 anos. O estudo está disponível neste link, tendo sido orientado pela professora Elisabete Cristina Barreto Müller.
A pesquisa buscou entender os fatores que levam à subnotificação de violência doméstica entre as mulheres idosas, revelando uma série de obstáculos que dificultam o acesso dessas vítimas ao sistema de proteção. Entre os principais fatores apontados estão a dependência emocional e financeira, especialmente em comunidades menores, além de barreiras culturais, como a ideia de que o casamento deve ser preservado até o fim da vida. Além disso, 3 das 4 vítimas idosas relataram que seus agressores têm problemas com álcool ou drogas.
Outro ponto destacado pelo estudo foi a falta de infraestrutura e de políticas públicas voltadas ao atendimento de mulheres em situação de violência, especialmente nas cidades menores. Embora Encantado tenha uma população idosa crescente – mais de 5 mil pessoas acima dos 60 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –, a cidade carece de suporte adequado para amparar essas vítimas.
O cenário ganha contornos ainda mais preocupantes quando se considera que, segundo projeções, o número de idosos no Estado do Rio Grande do Sul deve superar o de crianças até 2030. No Vale do Taquari, onde está localizada a cidade de Encantado, 18,3% da população já é composta por idosos, um número que cresce rapidamente.
A pesquisa também trouxe à tona a necessidade urgente de políticas públicas eficazes e projetos que atendam às especificidades das mulheres idosas em situação de violência, proporcionando-lhes um ambiente seguro para denunciar os abusos e buscar ajuda. Embora as leis brasileiras, como a Lei Maria da Penha e o Estatuto do Idoso, garantam proteção às mulheres idosas, a pesquisa conclui que esses mecanismos ainda não atingem de forma adequada as populações de áreas mais remotas.
Especialistas apontam que o aumento da população idosa e a disparidade no número de registros de ocorrência entre as diferentes faixas etárias refletem a necessidade de um olhar mais atento das autoridades públicas. Encantado é apenas um exemplo de uma realidade que se repete em muitas outras cidades do interior do Brasil.
Motivações e percepções sobre a pesquisa
“Desde o início da graduação, percebi que apreciava o estudo ligado a pautas femininas, às leis que de fato exigem proteção a essa fração da população. Também participei de programas elaborados pela Univates, como o projeto de extensão Maria da Penha. Assim, quando foi necessário escolher o tema do meu trabalho de conclusão de curso, decidi que daria prioridade a áreas com as quais tenho mais afinidade e que gostaria de efetivamente escrever e pesquisar”, conta a agora diplomada.
Nascida e criada em Doutor Ricardo, Verônica conta mais detalhes sobre a motivação para pesquisar o tema. “Da vontade de escrever sobre pautas de enfrentamento à violência doméstica e do fato de conviver em uma comunidade pequena, distante de grandes cidades ou metrópoles, concebi a ideia de realizar uma pesquisa voltada a este público restrito, mulheres idosas que residem em cidades interioranas e que também são vítimas da violência doméstica. O município de Doutor Ricardo não tem delegacia de Polícia Civil, então me ative à cidade vizinha, que abrange e conta com a sede da comarca, Encantado”.
“O principal desafio enfrentado foi de fato conseguir reunir esses números. O delegado responsável pela Delegacia de Polícia de Encantado foi sempre muito solícito, apreciou de pronto o tema da pesquisa, mas logo me alertou que a delegacia tinha sido atingida pela enchente de setembro de 2023 e que a localização dos dados seria um pouco mais trabalhosa. Todos estavam preocupados com o restabelecimento e a reestruturação dos serviços no pós-enchente, então acredito que esse tenha sido o principal desafio enfrentado por mim e por tantas outras pessoas”, explica.
“A questão é altamente complexa. São diversos os fatores que contribuem para que as mulheres idosas vítimas da violência doméstica e familiar não consigam fazer a denúncia. Desde a falta de estruturas efetivas capazes de atender às demandas de tratamento psicológico e auxílio jurídico até o fato de que muitas dessas mulheres não têm a quem pedir ajuda. Muitas vítimas, e não só aqui, mas espalhadas por todo o País, residem em locais afastados, não têm sequer telefone, assim, a informação não chega a elas. Ter uma rede de apoio é necessário, saber que a tem é imprescindível. Entre estar ciente de seus direitos e a decisão de fazer a denúncia, a mulher que reside em local remoto precisa abarcar uma série de fatores que muitas vezes não são perceptíveis às pessoas que estão desconexas dessa realidade. O fim do casamento, a opinião da comunidade, o ‘para quem pedir ajuda’ e o ‘E depois? Como vou sobreviver?’ são pensamentos que afligem essas vítimas, muito mais do que se pode imaginar. A solução para essa demanda não é simples. Para além de existirem infraestruturas e projetos de acolhimento, é necessário enxergar essas vítimas e, de alguma forma, fazer com que essas mulheres acreditem em um futuro melhor e que também são importantes, capazes e que podem sim dar fim a esse ciclo de violência, que muitas vezes é perpetrado por anos e anos”, diz.
“Por acreditarem que não têm alternativas, possibilidades de mudança, uma nova perspectiva ou alguém a quem possam pedir ajuda efetiva, as mulheres idosas que residem em localidades remotas deixam de fazer a denúncia e permanecem nesse ciclo de violência, estando à mercê da própria sorte. Como explicado na pesquisa, cidades de maior porte, como Lajeado, têm diversos projetos e estruturas de amparo e proteção à vítima. Desde a delegacia especializada, o acolhimento da casa de passagem, até o suporte jurídico fornecido pelo projeto de extensão elaborado pela Univates, todas essas estruturas de apoio são fundamentais e permitem que a vítima esteja segura para fazer a denúncia e para confiar em um futuro distante da violência”, finaliza.