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Artigos, Pesquisa

Pesquisas e povoamento antigos na Bacia Hidrográfica Taquari-Antas/Rio Grande do Sul

Por Fernanda Schneider e Neli Galarce Machado

Postado em 12/09/2024 12:39:49


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Por Fernanda Schneider (1) e Neli Galarce Machado (2)

Para o arqueólogo britânico Michael Shanks, o passado não é uma entidade imóvel, mas um fluxo incessante de memórias, um emaranhado de conexões que se tecem entre os vestígios da história. Como um rio que se transforma ao longo de seu curso, o passado se recria a cada instante, moldado pelas mãos do tempo e pelas interpretações que dele fazemos. Essas conexões, fluídas e contextuais, apontam um passado que se entrelaça com o presente, formando uma rede viva, onde cada fio conduz a novas interpretações e significados.

Imbuída desse espírito, a equipe do Laboratório de Arqueologia do Museu de Ciências da Univates percorre os campos e explora as evidências que emergem após as cheias dos rios de setembro de 2023 e maio de 2024. Cada fragmento descoberto é mais do que uma peça do quebra-cabeça histórico; é uma nova linha na história da região, um eco de tempos antigos que ressoa no presente. Assim, os arqueólogos não apenas desenterram o passado, mas o recriam, trançando com delicadeza as narrativas do tempo, iluminadas pela luz das novas descobertas.

É essencial ressaltar que, não só os cientistas, cada indivíduo e cidadão deve cultivar em suas atitudes e ações um profundo compromisso com a preservação e o cuidado desse passado indígena. Os fragmentos que agora emergem dos sedimentos carregam em si a história de grandes civilizações que outrora floresceram nesses territórios. Esses vestígios não são apenas testemunhas silenciosas de tempos remotos, mas também portadores de memórias coletivas, que clamam por respeito e proteção. Reconhecer e valorizar essa herança é um ato de responsabilidade coletiva, onde o cuidado com o passado se reflete em um futuro mais consciente e respeitoso para todos.

Na primeira incursão em terras de Roca Sales, a equipe de campo, coordenada pela arqueóloga Fernanda Schneider e pela coordenadora geral Neli Galarce, ambas pesquisadoras da Univates e do Museu de Ciências, dedicou o mês de julho à realização de pesquisas minuciosas. Esse trabalho contou com o apoio do 

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e seguiu rigorosamente os protocolos estabelecidos pela portaria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. Consciente da importância de harmonizar a pesquisa com as atividades locais, a equipe demonstrou grande respeito pelos cronogramas de trabalho dos agricultores, assegurando que as investigações arqueológicas ocorressem sem interromper ou prejudicar as práticas agrícolas da região.

Assim como em todos os trabalhos científicos sérios e comprometidos, a arqueologia também emprega métodos e técnicas rigorosos para alcançar uma compreensão mais profunda de contextos que remontam séculos ou milênios de história. Durante o trabalho, a obtenção de dados exigiu o uso de tecnologias avançadas, como drones e softwares de processamento de imagens, complementadas por técnicas tradicionais de coleta, análise de sedimentos e interpretação contextual. 

Equipados com luvas, pincéis e espátulas, os arqueólogos escavaram detalhadamente o solo, coletando os achados e registrando cuidadosamente a localização de cada material dentro das quadrículas previamente demarcadas, demonstrando a precisão necessária para garantir a integridade dos achados e a qualidade da interpretação dos dados. O objetivo é reconstruir as histórias, modos de vida e dinâmicas sociais das civilizações que habitavam essas terras há muitos séculos, proporcionando uma visão mais completa e rica de nosso patrimônio cultural.

As escavações desenvolvidas em Roca Sales contaram com a participação de especialistas da Argentina, como o Dr. Daniel Loponte, arqueólogo do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas - CONICET de Buenos Aires, e de Santa Catarina, como a Dra. Mirian Carbonera, pesquisadora do Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina – CEOM e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó - Unochapecó. 

Além deles, bolsistas de extensão e iniciação científica do Laboratório de Arqueologia da Univates, egressos do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento - PPGAD, bem como mestrandos e doutorandos, também se juntaram à equipe. Houve a participação de professores do município de Roca Sales. Durante os dias de escavação, mais de 20 pesquisadores estiveram envolvidos, colaborando para a realização de um trabalho interdisciplinar que visava a obtenção de dados robustos e uma interpretação abrangente dos achados arqueológicos.

Durante os trabalhos de escavação, os pesquisadores tiveram a oportunidade de receber visitantes e dialogar sobre a relevância desses estudos para a história brasileira, além de proporcionar uma compreensão mais profunda de como era o ambiente antes da chegada dos primeiros europeus ao Vale no século 17. Entre os visitantes, foram recebidos moradores do local e estudantes das escolas da região, que puderam observar de perto o trabalho meticuloso dos arqueólogos. 

Essas visitas foram enriquecidas pelo envolvimento dos especialistas do projeto de extensão "Arqueólogo por um Dia", que aproveitaram a oportunidade para comunicar de maneira didática as nuances que envolvem o patrimônio cultural. Os estudantes e professores da educação básica puderam, assim, vivenciar uma experiência única, no próprio sítio arqueológico, aprendendo sobre a preservação do patrimônio e a importância da arqueologia para a construção do conhecimento histórico. 

O sítio arqueológico e os dados obtidos com as escavações

O sítio arqueológico escavado em Roca Sales fica localizado nas margens do rio Taquari, em uma fértil planície de inundação cercada por morros. Apesar da proximidade com o rio, até setembro de 2023 não havia registro de que enchentes atingiam a área e, durante décadas, o local foi utilizado para o plantio de cultivos, especialmente soja e milho.

A dinâmica da área sofreu um forte impacto quando a primeira grande enchente de 2023 arrasou a região. Depois, em maio de 2024, um evento ainda mais drástico varreu a superfície da área, revelando um sítio arqueológico surpreendente: uma antiga aldeia indígena Guarani, um povo que teve sua origem longínqua na Amazônia, e que depois de promover uma longa expansão pré-colonial em direção ao Sul, se estabeleceu nas férteis planícies do Vale do Taquari há séculos.

A aldeia possui formato semi-circular, tem uma praça central, e a sua entrada estaria posicionada para o norte. Essa configuração pode ser reconhecida pelo ordenamento de manchas de terra preta repletas de vestígios arqueológicos. Essas manchas são os resquícios das antigas casas ou de outras estruturas arquitetônicas da aldeia, que eram utilizadas para diversas atividades do dia-a-dia. Essas casas ou estruturas, depois de abandonadas, passaram por processos naturais de decomposição, assumindo a coloração escura que hoje pode ser rapidamente reconhecida pelo olhar dos especialistas. 

No interior dessas camadas de terra preta foram identificados vestígios arqueológicos em  grande quantidade. Entre esses, fragmentos de vasilhas cerâmicas, ferramentas de pedra lascada e polida, ossos de animais diversos, fragmentos de carvão, isto é, lenhos carbonizados, e sementes carbonizadas, assim como inúmeras estruturas de combustão, as fogueiras, elaboradas a partir do posicionamento circular de rochas. Além dos círculos de pedra, essas fogueiras ainda continham em seu interior grande quantidade de carvão proveniente da queima das madeiras, assim como restos ósseos de animais, que provavelmente representam vestígios de alimentação. 

Antes de serem abandonados pelos antigos grupos indígenas e perturbados pelas atividades agrícolas desde o século 19, os fragmentos encontrados formavam utensílios muito bem elaborados. Foi possível verificar, por exemplo, a presença de panelas com decoração corrugada (com marcas da pressão dos dedos) e ungulada (marcas de unhas), pequenas tigelas com motivos geométricos pintados em vermelho, branco e preto e grandes jarros pintados ou com decorações diversas mescladas. Essas belas panelas eram utilizadas para cozinhar milho, mandioca, feijão e outras tantas plantas domesticadas e dominadas por esses povos, além de servirem para o preparo bebidas e poções medicinais. 

Entre as ferramentas de pedra, foram encontradas pequenas lascas afiadas de calcedônia, seixos de basalto lascados e machados finamente polidos. A utilização dessas ferramentas poderia ser variada, mas, é comum que se associe as finas lascas de pedra com a função de cortar e manipular carnes e peles de animais, os machados polidos ao ato de cortar lenha e para o uso na derrubada de árvores e os grandes instrumentos de pedra lascada como utensílios para cavoucar o solo e preparar o plantio dos cultivos domesticados nas roças que ficavam próximas da aldeia.

O sítio revelou, ainda, um contexto funerário extremamente interessante e bem preservado. Cinco sepultamentos foram descobertos depositados na porção sul da aldeia. Três desses sepultamentos foram realizados dentro de grandes urnas funerárias feitas em cerâmica. Os outros dois foram depositados meticulosamente em uma cava no solo. Os corpos, cuidadosamente posicionados e colocados junto de seus adereços, demonstram um profundo respeito pelos mortos. 

Os materiais recuperados durante a escavação agora estão passando pelo processo de higienização, registro e acondicionamento. Logo depois, serão analisados individualmente em laboratório, seguindo protocolos rigorosos. Além das centenas de fragmentos de cerâmica, lascas, núcleos de rochas e dos machados em pedra, uma série de outras amostras foram recolhidas para datações de carbono-14 (C14) e para a realização de microanálises. 

Entre essas, destacam-se as análises de grãos de amido, fitólitos, lenhos carbonizados (antracologia) e de sementes (carpologia), que visam a identificação do consumo e do manejo de plantas antigas. Análises específicas também serão realizadas sobre os ossos da fauna, buscando a identificação das espécies de animais que eram caçadas e consumidas por esses grupos. Os sepultamentos humanos vão receber, por sua vez, uma detalhada análise de especialistas em bioarqueologia, incluindo análises osteopatológicas e de isótopos estáveis. Essa última, contribuindo para a informação sobre a dieta alimentar dos indivíduos.

Fragmento localizado no sítio

Os próximos passos da pesquisa

O trabalho está atualmente em sua primeira etapa. Agora, depois de finalizadas as escavações, um extenso processo de análise e interpretação das evidências está por vir. O propósito do grupo de pesquisa do Laboratório de Arqueologia, do Museu de Ciências, do PPGAD e do Programa de Pós-Graduação em Ensino - PPGEnsino é contribuir para a edificação e o reconhecimento da História Indígena regional, em vez de tratá-la como mera pré-história. O objetivo é alcançar o máximo de informações para compreender os projetos dessas civilizações que, originárias da Amazônia, conseguiram expandir sua presença e exercer domínio ambiental e cultural em muitos espaços do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia. 

Um dos aspectos mais importantes da pesquisa é mostrar que muito antes da chegada dos imigrantes europeus, grandes comunidades indígenas já habitavam essas terras, com evidências de ocupação que remontam a milênios. Essas descobertas desafiam a visão tradicional de civilização, frequentemente definida por tecnologia e costumes ocidentais, cultura científica ou visão de mundo. A pesquisa indica que essas comunidades, como os Guarani, tinham projetos de longa duração na região, evidenciados pela complexidade do uso do espaço e pelos diversos tipos de sepultamentos encontrados.

O estudo sobre os povos Guarani no Vale do Taquari já vem de longa data. A pesquisa de doutorado de Fernanda Schneider, defendida em 2019, evidenciou que a história dos Guarani na Bacia do Taquari-Antas, ocorrida entre os séculos 14 e 19, foi marcada por uma ocupação intensiva e duradoura. A chegada dos jesuítas e bandeirantes em 1630 causou mudanças significativas, levando ao declínio de muitas aldeias Guarani, embora algumas aldeias bem fortalecidas politicamente tenham permanecido ativas e influentes até cerca de 1800. A pesquisa sugere que a presença Guarani foi mais complexa e resistente do que se imaginava, moldada por fatores políticos, ambientais e de prestígio.

Na sua tese, Fernanda apresenta uma sociedade Guarani altamente complexa em termos de domínio ambiental, demonstrando uma escolha sofisticada de áreas para construção de habitações, um impressionante conhecimento botânico, e variadas estratégias para a construção das suas aldeias e para a obtenção de alimentos em abundância. A análise minuciosa de cronologias obtidas por datações radiocarbônicas, mostra que essa sociedade permaneceu continuamente vivendo e explorando as margens do Forqueta por mais de 400 anos. 

Essa sociedade altamente organizada, muitas vezes minimizada ou ignorada em favor de narrativas eurocêntricas, contrasta com o estudo das grandes civilizações como o Egito e a Mesopotâmia, que são amplamente abordadas na educação escolar. Enquanto o Egito é celebrado por suas terras férteis e a Mesopotâmia pelo Crescente Fértil, a importância do rio Taquari e seus afluentes, como o Forqueta, no contexto da história do Vale Fertil, ainda é subestimada e pouco explorada.

As autoras

(1) Fernanda é pós-doutoranda em Arqueologia pelo CNPq, pesquisadora do Laboratório de Arqueologia do Museu de Ciências da Universidade do Vale do Taquari e pesquisadora do Instituto Nacional de Antropología y Pensamiento Latinoamericano (INAPL) de Buenos Aires. Foi pós-doutoranda em Arqueologia pelo CONICET (Argentina), desenvolvendo pesquisa no INAPL de Buenos Aires. Possuo doutorado em Ciências com tese em Arqueologia pelo PPGAD da Universidade do Vale do Taquari. 

(2) Neli é doutora em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (2004). Atualmente é professora titular da Univates, no curso de História e docente permanente do Programa de Pós Graduação em Ambiente e Desenvolvimento e do Programa de Pós Graduação em Ensino. Coordenadora do Laboratório de Arqueologia do Museu de Ciências da Univates.

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