Utilizamos cookies neste site. Alguns são utilizados para melhorar sua experiência, outros para propósitos estatísticos, ou, ainda, para avaliar a eficácia promocional do nosso site e para oferecer produtos e serviços relevantes por meio de anúncios personalizados. Para mais informações sobre os cookies utilizados, consulte nossa Política de Privacidade.

Artigos

Patrimônio Histórico e emergências: referências em risco

Por Sérgio Nunes Lopes

Postado em 20/06/2024 10:47:58


Compartilhe

A reconstrução da Ponte de Ferro sobre o Forqueta, que conecta a região de altitudes mais baixas a que se apresenta nas escarpas da Serra Geral e para além delas em direção à nascente, na margem direita do rio Taquari, trouxe uma série de questões que merecem atenção em tempos de reconstrução. Pensando pragmaticamente, as pontes conectam um ponto a outro servindo como estruturas que visam transpor “obstáculos” entre uma extremidade e outra que se deseja conectar. Dessa perspectiva uma ponte não surge com a intencionalidade de se transformar em Patrimônio Histórico e Cultural. O que reveste uma estrutura assim de significado a ponto de configurá-la como um Patrimônio Histórico é a sua capacidade de interconectar tempos a partir dos significados construídos pelas experiências humanas cujas memórias ela traz à tona.

Em 16 de julho de 2024, a Ponte de Ferro, como ficou conhecida, completa 85 anos. O seu processo construtivo sofreu revezes em função da falta de recursos para a concretização, mas a cerimônia solene de sua entrega em 1939 teve repercussão estadual. Conforme a obra “Arroio do Meio: entre rios e povos”, a construção foi iniciada ainda em 1927, sendo paralisada em 1929 e só concluída dez anos mais tarde.

Assim como na reconstrução recém-terminada (junho do corrente ano), na sua concepção ainda na primeira metade do século XX, a mobilização de diversos atores e agentes da sociedade regional se fez sentir. As experiências vividas por aqueles que tomam parte em projetos que têm a repercussão social das ocasiões que têm como materialização a ponte em questão a potencializam enquanto Patrimônio Histórico e Cultural. São múltiplos os ângulos de observação que justificam a atribuição de tal alcunha. Conceitualmente, da perspectiva das Ciências Humanas, o Patrimônio Histórico e Cultural é tudo aquilo que, pelo seu valor, é considerado de interesse e relevância para a identificação da cultura de uma coletividade, seja mediante aspectos históricos, étnicos e/ou sociais. Pelo menos alguns desses imperativos revestem a estrutura em questão.

Pelo viés histórico, a partir da Ponte de Ferro, se pode refletir acerca da constituição da logística regional ao longo do último século. A obra “Arroio do Meio: entre rios e povos” traz, na página 351, a transcrição do discurso proferido pelo promotor público Paulo de Bem Veiga na cerimônia de inauguração em 16 de julho de 1939. A autoridade destaca que a ponte inaugurada naquela data apresentar-se-ia como “um complemento indispensável do sistema rodoviário da região do Alto Taquari. O seu mérito precípuo está em assegurar o trânsito permanente e o transporte fácil da produção dos municípios de Arroio do Meio, Encantado, Guaporé e Soledade para os mercados de consumo, o que, sem dúvida, virá intensificar ainda mais o comércio e a indústria desta vasta zona”. A partir desse excerto poder-se-ia investigar pelas lentes historiográficas o que produziam as regiões citadas e para quais mercados era direcionada esta produção. Portanto, trata-se de um documento a partir do qual se pode investigar, além da logística, como estavam articuladas a produção e a comercialização entre as regiões citadas.

No que concerne à cultura de mobilização comunitária, também abundam relatos de engajamento de lideranças e até de agentes sociais que restaram anônimos no transporte das pedras e na construção dos pilares que suportam há tanto tempo a estrutura metálica sobre a qual se ajusta a madeira que compõe a pista de rolamento. Eis, então, mais um elemento a dizer da história regional: a organização comunitária ao redor de iniciativas que surgem ao menos com o intuito de beneficiar a coletividade.

No âmbito da organização política dos territórios interconectados (Arroio do Meio e Lajeado), a estrutura também pode ensejar reflexões. Ao longo do tempo, a ponte precisou passar por manutenção. As administrações precisaram dialogar para que as medidas fossem levadas a termo. Neste aspecto (o político), as questões ideológicas aproximam e/ou afastam administrações de ambas as municipalidades. Uma vez mais a estrutura estimula análises. Conforme a obra antes mencionada, em janeiro de 1981, a ponte foi interditada. Depois de algumas negociações, as prefeituras de Lajeado e de Arroio do Meio entraram em acordo para substituir a madeira que estava podre inviabilizando a passagem segura pela ponte. Na época já estava em operação a RS 130, o que poderia servir de argumento para quem quisesse deixar em segundo plano a histórica ponte.

Somada às referências históricas até então mencionadas está a atribuição de significados imputados pelos sujeitos contemporâneos. Não raro, ali na conexão entre a rua Marechal Floriano Peixoto (Arroio do Meio) e a Senador Alberto Pasqualini (Lajeado), se tem a produção de registros fotográficos. São ocasiões que os sujeitos julgam significativas em suas subjetividades, tais como comemorações de 15 anos e pré-nupciais, entre outras. Justamente por atribuírem àqueles momentos significados que as constituem, as pessoas registram fotograficamente e escolhem a Ponte de Ferro como lugar para ancorar as memórias a partir das quais pretendem atravessar a existência entre as venturas e desventuras imanentes ao processo humano de participar do mundo.

Ainda que não haja nenhuma legislação de nenhum âmbito (municipal, estadual ou federal) tombando aquela estrutura como Patrimônio Histórico e Cultural, pelas valências apontadas ao longo deste artigo, ela está revestida desta potencialidade. As situações de emergência e calamidade desencadeadas pelos últimos eventos climáticos descompõem tudo o que, ao longo de muitos anos, foi constituindo a paisagem. No afã de tratar o desconforto ou de superar os limites funcionais que o novo cenário impõe, por vezes, ao invés de restaurar, tem-se a tendência de desconsiderarem-se as premissas históricas e de constituição de valoração de outras ordens que não as monetárias. Isto posto em prática faz ruir as referências, sem as quais as gerações futuras encontrarão mais dificuldades para não incorrer nos mesmos equívocos que geram os cenários complexos e comprometedores da necessária harmonia entre povos e demais agentes naturais componentes dos espaços. As emergências não podem, portanto, comprometer as referências.

Sérgio Nunes Lopes é doutor em Ciências: Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD/Univates) e mestre em Patrimônio Cultural (PPGPPC-UFSM). É professor na Univates.

Fique por dentro de tudo o que acontece na Univates. Escolha um dos canais para receber as novidades:

Compartilhe

voltar