Se observarmos a trajetória histórica da instituição escola, é possível perceber que a organização do espaço escolar, e mesmo a ideia de quem pode frequentá-lo enquanto estudante e professor, mudaram com o passar do tempo, demonstrando certa aceitação pela diversidade humana nos espaços de educação. Contudo, considerando essas mudanças que permitiram diversificar o público que frequenta esses ambientes, porque alguns grupos de pessoas ainda estranham, por exemplo, a presença da figura do professor assumidamente homossexual na sala de aula?
Ao falar assumidamente homossexual, refiro-me a profissionais da educação que, assim como eu, transgridem algumas das normas impostas socialmente sobre aparência e formas de vestir-se e comportar-se dentro das características socialmente preconizadas como masculinas a fim de enquadrar-se nessa categoria (visto que eu me identifico como homem cisgênero homossexual(1)). Detalhando ainda mais, as normas transgredidas envolvem o fato de eu ser publicamente homossexual, possuir cabelo longo, por vezes usar unhas pintadas e mesmo ter características que parecem comuns, mas que também já serviram de motivo para especulação de minha sexualidade (mesmo quando eu não intencionava utilizá-la como cartão de visitas), como gesticular demais ao falar.
Para problematizar essa situação inicial, converso com alguns autores que podem nos auxiliar a compreender o porquê professores gays ainda são vistos como sujeitos não pertencentes ao ambiente escolar por algumas fatias da sociedade. Historicamente, os sujeitos homossexuais são vistos como não pertencentes a (muitos) contextos sociais, de maneira geral. Podemos dizer que, em nossa sociedade, existem os corpos desejáveis - que são os tidos como ideais - e os indesejáveis, que tentamos esconder, desvalorizar e/ou culpabilizar de diversas maneiras. Goellner (2009) diz que os desejáveis são os jovens, magros, heterossexuais, malhados etc. Na contramão estão os indesejáveis, que são os velhos, andrógenos, gordos (que ultimamente têm se imposto mais visivelmente) e os homo/trans/bi/pansexuais. Decorrem dessa lógica os padrões entendidos como ideais estéticos e de masculinidade x feminilidade, os quais, em princípio, não se deve transgredir para ser socialmente aceito de maneira plena, e que geram a sensação de que existe apenas uma forma de ser homem ou mulher, de se vestir, de se comportar, enfim, de existir.
No tocante ao ambiente escolar, que é o que estamos debatendo aqui, cabe salientar, ainda, que os corpos homossexuais sempre têm sido vistos com estranheza, pois nunca foram entendidos como padrão de docente. Em grande parte, isso se dá pela divisão sexual do trabalho em nossa sociedade e pelos estereótipos do ideal de professor/a que se propagaram ao longo do tempo. Para pensar sobre esse assunto, vamos voltar ao século XVIII em que, segundo Louro (2010), o ideal de docente era o eclesiástico: um homem, normalmente padre, heterossexual e branco, com vestes não chamativas e despido de vaidades que repreenderia os estudantes e se encarregaria de incutir virtudes neles, bem como de fiscalizar o desenvolvimento de sua conduta moral, enquanto as jovens moças aprendiam costura e bordado nos conventos. Já é possível aqui entender que havia uma divisão clara do que o homem e a mulher deveriam fazer e de quem deveriam ser, que lugares deveriam ocupar.
Já no século XIX, a função de educação passou a ocupar o lugar de profissão que envolvia cuidado, principalmente das crianças menores, e então as mulheres puderam ocupar o lugar de professoras, porque, socialmente, entendia-se que elas eram as cuidadoras por excelência dos pequenos. Contudo, elas deveriam vestir-se de maneira a apagar seus traços de gênero, ou seja, elas deveriam ser entendidas como uma figura educadora, podendo ter cabelos longos, mas outras vaidades eram-lhe negadas, o que culminou no surgimento da imagem de solteirona ou de tia (LOURO, 2010).
Com o passar do tempo, os ideais de professor e professora foram se modificando, bem como foi mudando o código de vestimenta no ambiente escolar e, em uma perspectiva mais ampla, a visão social a respeito de algumas características do que significa ser homem ou ser mulher. Entretanto, o pensamento binário e o ideal do corpo heterossexual enquanto o desejável para ocupar os espaços educativos seguiu firme e forte. Isso se reflete até hoje na fala de alguns grupos (de pais, gestores etc.) que, quando falam com um professor homem, pressupõem que, se ele se relaciona com alguém, será com uma mulher, pois para eles o natural é ser heterossexual e vice-versa - no caso das professoras mulheres.
Esse paradigma encontra força e funda-se, inicialmente, nos pontos de vista de algumas pessoas de determinadas expressões religiosas e, com o passar do tempo, no pensamento neoliberal conservador brasileiro, pois ambos entendem como possível apenas uma configuração de sexualidade e de gênero. Tal entendimento acaba por conferir o título de tabu a qualquer discussão sobre formas diferentes de ser homem ou mulher fora da cartilha da norma e, por conseguinte, faz com que os docentes, ou anulem sua sexualidade, ajeitando-se para caber no padrão redutivista de gênero, ou eles serão vistos como exóticos, estranhos e terão sua sexualidade exposta ou especulada de alguma maneira por quem acha que eles não pertencem, ou não deveriam estar no ambiente escolar (menos mal que não por todo mundo!).
Em suma, gostaria de finalizar com a frase do idioma inglês que a comunidade LGBTQIAPN+ usa como uma espécie de grito de resistência: Were here! Were queer! Get used to us! (2) Essa frase serve, neste texto, como uma afirmação da luta pelo direito de ocupar os espaços educacionais que, embora tenhamos conquistado, não são permanentes, uma vez que as políticas públicas que nos dão suporte são passíveis de mudanças periódicas.
(1) Cisgênero é a pessoa que se identifica com o sexo biológico com que nasceu.
(2) Nós estamos aqui! Nós somos queer! Acostumem-se conosco!
Referências
GOELLNER, Silvana Vilodre. O corpo como locus de identidade sexual e de gênero. In: XAVIER-FILHA, Constantina (Org.). Educação para a sexualidade, para a equidade de gênero e para a diversidade sexual. Campo Grande: Ed. UFMS, 2009. p. 165-173.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
O conteúdo e as opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade de seu autor.