Em 26 de janeiro de 2012, com origem no Rio Grande do Sul, foi protocolado, por meio do Recurso Extraordinário 670422, o pedido de alteração do registro civil de pessoas transgêneros sem que fosse necessária a cirurgia de mudança de sexo.
Foi, contudo, somente em 15 de agosto de 2018 que foi julgado o mérito de tema com repercussão geral. O Superior Tribunal Federal, por maioria, por meio do tema 761, deu provimento ao recurso extraordinário 670.422 e à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275 e decidiu:
Julgado mérito de tema com repercussão geral
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 761 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário. Vencidos parcialmente os Ministros Marco Aurélio e Alexandre de Moraes. Nessa assentada, o Ministro Dias Toffoli (Relator) reajustou seu voto para adequá-lo ao que o Plenário decidiu na ADI 4.275. Em seguida, o Tribunal fixou a seguinte tese: i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; ii) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero'; iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial; iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos. Vencido o Ministro Marco Aurélio na fixação da tese. Ausentes, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes, e, justificadamente, a Ministra Cármen Lúcia (Presidente). Presidiu o julgamento o Ministro Dias Toffoli (Vice-Presidente). Plenário, 15.8.2018. >Acesso em: 11 jun 2023>(https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4192182)
Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento 73/2018 para orientar os procedimentos para realizar a alteração de prenome e gênero diretamente nos cartórios de todo o Brasil. No mesmo sentido, a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) elaborou uma cartilha destinada à população LGBTQIAPN+, para instruí-los quanto aos procedimentos a serem realizados nos cartórios.
No ano de 2022, a Lei 14.382 alterou seu art. 56, estabelecendo que qualquer pessoa maior de 18 anos pode, a qualquer tempo, fazer a solicitação de retificação de prenome e gênero.
Depois dessa breve passagem informativa e jurídica referente ao tema, percebe-se então que houve a desjudicialização da alteração do prenome e gênero de pessoas trans - o que antes envolvia um enorme processo burocrático via judicial, e extremamente evasivo, uma vez que ainda necessitava da cirurgia de transgenitalização para que tal processo ocorresse.
Mas, e na prática, será que realmente ocorre tudo conforme a lei prevê? Fui à busca de alguém que já teria feito essa retificação em um cartório e, com a ajuda de uma amiga, consegui encontrar.
A partir de agora conto a história de Carú Montero Rozin, transexual não binário de 25 anos, morador de Passo Fundo/RS. Carú foi o primeiro Transexual Não Binário de Passo Fundo a fazer a retificação de nome e gênero no Cartório de Registro - anteriormente o cartório da cidade somente havia feito a alteração de gênero do masculino para feminino e vice-versa. Ele inclusive se tornou notícia na plataforma do clicRBS em razão desse fato.
Pergunto o que é não binário nas palavras dele, além daquilo que pesquisei:
A palavra binário vem de dois, binário de gênero, exemplificativamente é o homem trans ou cis, mulher trans ou cis, ou um ou outro A questão de não binário não se encaixa nas normas de isso ou aquilo, de ser mulher ou homem. Nosso gênero vai muito além disso. Então nós somos pessoas trans também - não nos encaixamos no gênero no qual nascemos. Dentro da questão, não binário é um termo guarda-chuva para várias expressões de gênero fora da binariedade de gênero. Por exemplo, eu sou uma pessoa trans não binária e sou uma pessoa agênero. O meu caso é que eu sinto ausência de gênero, e não consigo sentir uma coisa ou outra Sendo assim, há um leque de possibilidades dentro do não binarismo.
Referente a colocar o gênero como não binário na certidão de nascimento:
A sociedade num todo, o sistema judiciário, o sistema que move a sociedade, as pessoas num geral que estão dentro do binarismo de gênero e dessa heteronormatividade, em sua grande maioria, não entendem, e até mesmo da própria comunidade LGBT, não sabem a diferenciação de orientação sexual, expressão de gênero, de identidade de gênero As pessoas não sabem disso, pois consideram-se normais. Dessa forma, não se interessam em saber sobre um assunto que não convém a elas.
Prossegue:
Ter a possibilidade de colocar no sexo da minha certidão não binário seria uma coisa errada, como não é o meu sexo, pois o meu sexo é feminino. Por mais que eu seja uma pessoa trans, eu tenho a genitália feminina. O próprio sistema no qual vivemos não tem conhecimento do que é o quê. Tentam de uma forma ou de outra sanar as demandas de uma maneira equivocada. Mas como tinha a opção de sexo binário, e como sou uma pessoa não binária, eu optei em colocar não binário como sexo, mas sexo é uma coisa, gênero é outra, identidade é outra, expressão de gênero é outra. Sendo assim, foi possível colocar sexo não binário na minha certidão, mesmo que eu seja do sexo feminino - fato que as pessoas não entendem. Foi então que cheguei ao cartório de Passo Fundo para pedir a lista de documentação para retificar o meu nome e gênero.
Carú relata ter tido dificuldades ao descrever no cartório a sua vontade de retificar seu nome e gênero, pois percebeu despreparo das pessoas, despreparo dos órgãos que deveriam informar, dos sites que deveriam orientar, pois são insuficientes e muitas vezes não funcionam corretamente.
Ele então foi em busca de ajuda no Sistema Único de Saúde (SUS) por meio da Assistência Social de Saúde da Mulher e LGBT de Passo Fundo. Foi então que começou um processo lento e ainda burocrático até que tudo se concretizasse. Segundo Carú, a ajuda da assistente social foi relevante para juntar toda a documentação necessária. Até mesmo na questão dos valores da retirada desses documentos, pois há muitas taxas a serem pagas - contudo estas podem ficar isentas caso haja declaração de hipossuficiência econômica.
Carú explicita que o sistema não está preparado, pois levou meses para tudo ficar pronto, e muitas pessoas desistem do processo no meio do caminho, em decorrência dessa burocratização, valores e falta de informação. Em relação ao preconceito, Carú disse que sim, ainda existe preconceito nos lugares onde vai. Felizmente fisicamente nunca sofreu violência.
Pergunto sobre o sentimento de ter alterado seu prenome e gênero em seus documentos. E ele menciona a palavra Renascimento: a sociedade ver as pessoas como elas realmente se sentem torna tudo mais simples.
Depois de ter conhecido um pouco da realidade de uma pessoa transexual não binária que retificou seu nome, concluo que ainda há muita luta nesse sentido. A lei existe, mas, no dia a dia, para essas pessoas, é como se ela não existisse, pois elas têm que provar quem são para a sociedade. Elas têm que vencer o preconceito para continuar e não desistir dessa batalha.
Dedico este texto às pessoas LGBTQIAPN+, e meu agradecimento especial ao Carú Montero Rozin, pela disponibilidade e paciência. Que sua história sirva de exemplo àqueles que estão na busca dos seus direitos.
O mundo está nas mãos daqueles que têm coragem de sonhar e correr o risco de viver seus sonhos. Paulo Coelho
Referências:
TEXTO DIGITAL. Tema 761 - Possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. Acesso em: 11 jun 2023 >https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4192182<.>
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