Quando se fala sobre serviços de saúde, é importante retomar os princípios básicos do Sistema Único de Saúde (SUS), que são a equidade, a universalidade e a integralidade, ou seja, devem ser ofertados serviços que atendam a população em geral conforme suas especificidades, em todo o território nacional e sem distinção. Porém, por múltiplos fatores, algumas populações acabam tendo dificuldade em acessar os serviços da rede pública de saúde, dentre elas a população LGBTQIAPN+ (1), que, para além do acesso, ao serem atendidas encontram entraves como LGBTfobia, práticas estigmatizantes e julgamentos morais.
Em um primeiro momento, é necessário refletir sobre formas de acesso e acolhimento nos espaços de saúde. Muitas pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ evitam ou têm dificuldades no princípio do processo, que é de acessar aos serviços, seja por desconhecimento, insegurança, medo de discriminação, seja por experiências anteriores de rechaço e preconceito. Uma das maiores oportunidades de reverter esse quadro é o investimento em práticas de acolhimento humanizado.
O acolhimento é uma das principais portas de entrada do SUS e uma estratégia de extrema importância. É o ato de receber, escutar e cuidar, de forma qualificada e humanizada, do usuário e de suas demandas, sendo um importante instrumento na construção do vínculo, que permite o desenvolvimento de ações humanizadas, a promoção de um ambiente terapêutico e de acolhimento para melhorar a qualidade da assistência.
Para realização de um acolhimento, entendido como acolhimento humanizado, é importante ouvir o acolhido de um modo receptivo, aberto, empático e atencioso. Isso irá permitir a escuta qualificada, que deve ser livre de estigmas morais e conceitos preestabelecidos. Esse momento permite conhecer a dinâmica do usuário e estabelecer uma relação de confiança entre profissional, usuário e o serviço. Caso não seja realizado de modo sensível e humanizado, a chance de reprodução de violências e de não estabelecer um vínculo adequado é muito grande.
Outra questão que dificulta ou causa uma má experiência ao acessar os locais é a falta de conhecimento dos profissionais sobre conceitos básicos de orientação sexual e identidade de gênero, assim como resistência em utilizar o nome social e em respeitar as diversidades, seja por desconhecimento, seja por fatores morais individuais. Há, ainda, um extenso histórico de associação constante da população LGBTQIAPN+ a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), que é marcado por fatores de preconceito e estigma que reproduzem preconceitos. É de extrema necessidade que as pessoas compreendam que a população LGBTQIAPN+, em um contexto nacional, está sujeita a diversos modos de violência, seja física, moral ou psicológica.
O Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de maior registro de assassinatos e violência física contra a comunidade LGBTQIAPN+, então é urgente que sejam garantidos direitos básicos e o acesso aos serviços de saúde que possam promover cuidado e alívio dos sofrimentos. Mas não cabe apenas oferecer um atendimento de cuidado biológico, é necessário e mostra-se eficaz o cuidado integral e humanizado, um atendimento qualificado com intervenções eficazes, articulando a rede intersetorial e a educação permanente para o cuidado dessa população, com respeito à diversidade e ações afirmativas no campo da diversidade sexual e de gênero.
É necessário oferecer aos profissionais a educação permanente, dentro das possibilidades de cada serviço, a atualização e espaços de discussão sobre diversidade, acolhimento e legislações. É preciso repensar práticas de atendimento e acolhimento hetero e cis centradados, que visem ao cuidado dos sujeitos assistidos, que não violem ou reproduzam as violências cotidianamente reiteradas e as práticas de aniquilamento das subjetividades diversas.
Essas práticas podem ser utilizadas desde o primeiro contato, seja pelo entendimento de que nem todas as pessoas acolhidas terão práticas de vida hetero cis centradas, que o atendimento não deverá se basear em padrões morais de qualquer natureza que não atender à saúde do indivíduo, que visem ao cuidado de modo integral conforme as particularidades de cada caso e com embasamento teórico científico.
O cuidado humanizado e o respeito à diversidade são formas eficazes de reparar desigualdades, além de serem uma estratégia de produção de saúde em uma população historicamente com menos acesso à saúde. A população LGBTQIAPN+ é marcada pela exclusão, associada a constante discriminação, por isso é necessário que o profissional da saúde se coloque como agente de mudança e transforme essa realidade por meio de ações em seus próprios espaços de atuação, considerando práticas de diálogo, respeito e reparação, reconhecendo e legitimando a existência desses usuários.
É necessário considerar práticas de atendimento de forma ética que reconheçam e sustentem as diferenças, salientando que o cuidado se ancora nos encontros e nas relações humanas - as quais produzem sentido para o próprio usuário e político quando se potencializa o protagonismo, por meio de parâmetros humanitários que envolvam solidariedade e cidadania.
(1) Sigla que contempla diversas subjetividades: lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, intersexuais, assexuais, não binários e demais formas de diversidade sexual e de gênero.