Por Fabiane Prestes, graduada em Direito, doutora em Ambiente e Desenvolvimento pela Univates e pós-doutoranda em Educação em Ciências.
Pindorama era diversidade, cosmologia e coletividade. O Brasil que começou em 1500 é luso, católico e desigual. Desde os primeiros contatos, a escravidão foi introduzida, levando ao extermínio de milhões de indígenas. Suas crenças foram desprezadas pela imposição dos dogmas católicos. A natureza, sagrada para os nativos, vem sendo destruída desde a mercantilização do pau-brasil - processo intensificado nas últimas décadas pelo agronegócio, mineração, grilagem etc.
Nesse contexto, é fundamental compreendermos que, antes da grande invasão, o território já era habitado por povos originários. E, por essa razão, a Constituição Federal de 1988 reconheceu aos povos indígenas o direito originário à terra, determinando que as terras indígenas sejam demarcadas pelo Poder Executivo. Atualmente o procedimento de demarcação é burocrático e demorado, mas há a observância dos estudos técnicos e o rigor em todas as determinações legais. Assim, a demarcação de terras indígenas é uma reparação histórica de 488 anos de injustiças.
É fato inconteste que há uma invisibilidade do indígena brasileiro no processo histórico, a qual é perpetuada pela tradição escolar. A história nos foi ensinada a partir do etnocentrismo europeu, de livros didáticos que mostram um processo de conquista a partir de visões da literatura romântica, predominando narrativas do indígena que trocou terras por espelhos, que estabeleceu relações amigáveis com o europeu e que viveu no passado. Afinal, grande parte do senso comum defende que não há mais índio de verdade e os que ainda existem vivem na Floresta Amazônica.
Por outro lado, as mais cruéis formas de genocídio indígena são temas pouco refletidos. Quem não se restringe em compreender a história do Brasil a partir da Carta de Caminha tem a possibilidade de acessar uma vasta documentação sobre a mortandade indígena, que vai desde a recomendação para matar aqueles que resistissem até a orientação para que aldeias inteiras fossem destruídas. Entre os séculos XVI e XVIII foram dizimados 3 milhões de nativos e foi escravizado o mesmo número de africanos. E o que aprendemos? Que os indígenas são preguiçosos e, por isso, foi necessário recorrer à mão de obra africana.
Mas não há dúvidas de que a sociedade brasileira foi constituída a partir da barbárie. Nesse contexto, os indígenas do Rio Grande do Sul não tiveram melhor sorte. Tema igualmente pouco discutido é que, após a chegada da imigração alemã e, posteriormente, da italiana, inúmeros indígenas foram capturados, mortos ou levados para aldeamentos. E é por isso que as décadas que sucedem a Constituição de 1988 são marcadas por intensos processos de reterritorialização, ou seja, retorno aos territórios tradicionais, os quais ocorrem em diversas regiões do Brasil, inclusive no Rio Grande do Sul, em territórios da região Metropolitana e do Vale do Taquari, entre outros.
Tirar o véu que encobre o processo de conquista e colonização pressupõe reconhecermos que as populações nativas de Pindorama foram massacradas e seus sobreviventes foram alocados em aldeamentos. Houvesse clareza e conhecimento, não haveria cabimento em discutirmos o Marco Legal para a demarcação de terras indígenas. A tese dos que defendem o marco temporal intenciona que a demarcação de uma terra indígena depende da comprovação de que os indígenas estavam ocupando o local em 05 de outubro de 1988. Mas como os indígenas poderiam estar ocupando seus territórios tradicionais em 1988 se, desde o século XVI, foram forçados a abandoná-los?
Somente com a Constituição Federal de 1988 é que os indígenas brasileiros foram reconhecidos como sujeitos de direitos. Isso significa que, até 05 de outubro de 1988, esses povos eram considerados relativamente capazes e, como sujeitos tutelados, precisavam que um órgão público lhes representasse e, inclusive, autorizasse suas saídas eventuais e temporárias dos aldeamentos controlados pelo governo. É óbvio que a Constituição Federal traz em seu bojo o direito originário à terra aos indígenas justamente porque, até a sua promulgação, os indígenas não tinham a posse de seus territórios tradicionais.
Assim, a tese do marco temporal é uma estratégia contemporânea de um sistema desenvolvimentista, excludente, desigual e injusto. Reitera-se que a discussão não foi aventada na Assembleia Constituinte e representa uma afronta aos princípios constitucionais. Além de inconstitucional, é uma verdadeira afronta aos direitos humanos, não só dos povos indígenas, mas de todos os cidadãos brasileiros. Defender o marco temporal é defender a barbárie, é defender a exploração ambiental, é defender o uso indiscriminado de agrotóxicos, é defender o desmatamento, é defender a mineração, é defender a contaminação de nascentes, é defender o fim sistemático da vida!
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