Há dias foi publicado um artigo bem escrito e repleto de bons mapas demonstrando escavações e estudos arqueológicos em terras amazônicas bolivianas, em um local conhecido como Llanos de Mojos. O que o estudo revelou é fantástico: a existência de um antigo e grande assentamento indígena escondido sob a floresta amazônica.
O assentamento possui traços de urbanismo e a sua arquitetura contém calçadas que se estendem por quilômetros, um sistema de gerenciamento de água com canais e reservatórios, várias estruturas defensivas e plataformas de vários tamanhos. O povo que o construiu se chama Casarabe e viveu naquela região entre os anos de 500 e 1400? a.C.. Até o momento, nada assim havia sido descrito para a Amazônia.
Essa pesquisa foi publicada num dos melhores meios de comunicação da ciência mundial. Infelizmente é uma revista voltada somente para os cientistas. Talvez, por esse distanciamento da comunidade em geral e do público das redes sociais é que tivemos umas das maiores invencionices sobre cidades perdidas que nunca existiram na Amazônia.
A Amazônia, como bioma e território multicultural, sempre foi alvo de projetos abusivos, fantasias, engodos e ilusões. Isso se dá desde a chegada dos primeiros viajantes europeus. Muitas vezes, como fonte de riqueza territorial, mercantil e capital. Em outras, como lugar de criações delirantes, intempestivas e desastrosas. As riquezas, bem mais relacionadas com a madeira, as sementes, as mudas e a terra do que com os minérios e as pedras preciosas, foram transportadas, usadas e roubadas por séculos.
E até hoje acontecem em proporções ainda assustadoras, pois esse saque ainda persiste. O artigo publicado na Nature se trata de uma investigação arqueológica madura, com inúmeros pesquisadores do mundo todo e de grandes universidades e centros de pesquisas. No entanto, certo é que a arqueologia sempre foi uma ciência distante do nosso viver cotidiano. Por ser distante, encontra terreno fértil nas redes sociais para a criação de fantasias e de delírios que distorcem os dados científicos.
São ideias cheias de pirâmides, de lendas de cidades perdidas que não existem, de riquezas e tesouros escondidos, de aliens e de cientistas loucos e ambiciosos. Nós, como educadores e cientistas, teríamos que refletir sobre o que leva a isso! Onde foi que erramos ou deixamos de falar e o que podemos fazer para amenizar essa falta de informação. Para tentar dialogar com os leitores, primeiramente queremos refletir sobre o papel do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), das Universidades, dos pesquisadores, dos gestores das cidades, como os prefeitos e vereadores, dos empresários, dos responsáveis pelos Museus e Casas de Cultura e, por fim, dos professores das escolas.
Começamos pelo Iphan. É uma autarquia federal do Governo do Brasil. Esse instituto é bem antigo e foi criado em 1937. Ele tem a missão de Promover e coordenar o processo de preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro para fortalecer identidades, garantir o direito à memória e contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do país. Vejam que é notável que poucas pessoas de nossas comunidades têm conhecimento de que em nossa nação existe um órgão com tão importante missão: cuidar do nosso passado e do patrimônio. Sabiam que todas as pesquisas arqueológicas no Brasil precisam ter autorização oficial dessa autarquia? Todo e qualquer empreendimento construído deve ter autorização para realizar sua obra.
Assim, indico a segunda categoria da minha reflexão, as Universidades. Essas têm um papel importante, talvez o mais vultoso, que é formar pessoas qualificadas para esse tipo de pesquisa e promover para a comunidade ações educativas que levem informações sérias e corretas sobre o nosso passado e como podemos ajudar a cuidar de nosso patrimônio. Os cientistas das Universidades têm o papel de elaborar informações e popularizar seus dados, que podem e devem ir para periódicos importantes como a Nature, mas também devem ser traduzidos e socializados com a população em geral.
Já nossos gestores têm a responsabilidade de conhecer e também proteger o patrimônio com ações executivas e legislativas. Por exemplo, disponibilizar leis atualizadas e verbas para cuidar e manter os sítios arqueológicos, prédios antigos, praças, casas, lugares de memória, rios, florestas, matas E o principal, ter em seus quadros especialistas na área.
Nossos empreendedores e empresários poderiam ser mais cuidadosos e modernos com a ideia de progresso e de desenvolvimento e se atualizar em relação às perspectivas mundiais de turismo e cuidados com o patrimônio. Até se beneficiar com isso também, como em Barcelona, México, Londres, Buenos Aires, Montevidéu!
E meus colegas de Museus e Casas de Cultura! Todos, sem exceção, deveriam ser profissionais especializados na área e voltados à educação ambiental e patrimonial. Deveriam ser profissionais atualizados de longa duração em seus postos.
E, por fim, nós, os professores! Nossa responsabilidade nessa mudança de perspectiva e do fim ou pelo menos da amenização de informações mentirosas e de invencionices sobre nosso passado latinoamericano que correm soltas pelas redes sociais talvez seja exigir ou se aproximar mais das universidades e criar ações e programas com promoção das Prefeituras com ações educativas para nossos pequenos e jovens. Ações com profissionais da área. Por exemplo, conversar com os arqueólogos, chamar os historiadores profissionais para elaborar conteúdos sobre a nossa história mais antiga, regional, local. O ganho disso é que todos vão ver a olho nu que o trabalho dos arqueólogos não é o de buscar tesouros e lutar contra aliens e tampouco procurar cidades perdidas construídas por pessoas que povoam só o imaginário desses indivíduos sem informação.
O trabalho dos profissionais que levam anos, alguns mais de 30 anos, escavando no mesmo sítio arqueológico, como as equipes da Amazônia que escreveram o artigo, é tenso, longo e difícil. Mas, ao mesmo tempo, pensem conosco: o que leva jovens e pessoas maduras a ficar três a quatro meses em regiões de difícil acesso? Carregam equipamentos e são focados em técnicas de sondagens, prospecções, coletas de sedimentos, sementes, carvão, rochas e fragmentos de cerâmica e muito mais.
Estão lá com seus pincéis e espátulas, cansados, longe de suas famílias e do conforto do lar. Depois, quando voltam às universidades, ainda enfrentam a etapa mais difícil: vão precisar solicitar recursos para as datações e para as análises. E é quando começa o trabalho da escrita, reescrita, dezenas de idas e vindas de avaliadores de artigos e relatórios. Quando acontece a publicação do artigo é uma festa, uma alegria entre os arqueólogos e colegas, pois todos poderão conhecer um pouco mais sobre a história de civilizações antigas com estruturas sociais, políticas e projetos de crescimento e avanços, com tecnologias apropriadas ao seu tempo.
É a História Indígena que muitos insistem em inviabilizar e rejeitar. No fundo, o que o artigo trata é sobre isso: a História das Civilizações Indígenas que tinham um alto domínio tecnológico da terra, das matas, das florestas, das savanas, do pantanal, do cerrado, do litoral e de uma estrutura de poder e de avanço territorial político e ambiental. Infelizmente parece que, nesses poucos últimos quinhentos anos, cerramos os olhos e insistimos em negar essa história indígena milenar. Então, é sobre isso o artigo da Nature! Importante, mas discutido por pessoas sem informação básica.