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O racismo estrutural que precisamos descortinar

Postado as 13/08/2019 09:46:16

Por Elise Bozzetto

 

Esta matéria faz parte da nova edição da Revista Univates, publicada em agosto de 2019.

Divulgação

 

O país do futebol também é o país do racismo. Segundo dados do Atlas da Violência 2017, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de cada 100 homicídios cometidos no Brasil, 71 são contra negros. Estimativas do estudo, com base nos microdados do Censo Demográfico do IBGE, mostram que os índices não se restringem às causas socioeconômicas. O Atlas sugere que o cidadão negro (já descontados efeitos da idade, escolaridade, sexo, estado civil e local de residência) tem 23,5% mais chances de sofrer assassinato quando comparado a cidadãos de outras etnias.

Se olharmos a questão dos negros sob o ponto de vista econômico, o cenário mostra uma desigualdade muito grande. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) de 2017 mostram que a média salarial de brancos no país era de R$ 2.814,00. Entre pardos, a média caia para R$ 1.606,00 e a entre negros, para R$ 1.570,00. Ou seja, a população negra ganha pouco mais da metade do salário da população branca.

Elise Bozzetto

“O país que mais escravizou e o último a acabar com a escravidão. Portanto, temos uma dívida histórica com o negro desde o longo período da colonização. Negros sempre estiveram e ainda hoje estão sempre na desvantagem. É uma marca histórica”. A afirmação é da professora de Informática e estudante do Técnico em Comunicação Visual da Univates Ana Paula Lopes. 

A estudante afirma já ter passado por diversas situações de racismo. “As pessoas não dizem que são racistas. Quando questionadas, dizem que não são”, enfatiza Ana Paula. Ela relata desde o bullying sofrido na adolescência por seu cabelo até perder vagas de emprego para pessoas menos qualificadas. “Eu participei de uma seleção na qual eu tinha a formação e a experiência que a vaga exigia. Concorria comigo uma menina branca que nunca tinha trabalhado e estudava em área que não era a da vaga pretendida. Eu não fui chamada. A menina desistiu da vaga. Daí então me chamaram. E eu pensei: ‘Não vou desistir pelo racismo deles. Eu vou aceitar a vaga e mostrar a minha capacitação’”, conta a professora. 

Para Ana Paula, o negro deveria ter mais representatividade para poder se reconhecer e se orgulhar. “Temos que conhecer a verdadeira história brasileira, o protagonismo do negro na construção do nosso país. Não podemos mais aceitar o papel de oprimidos. Na escola, os livros de história retratam os negros trazidos como animais em navios negreiros, acorrentados em condições desumanas, e assim permaneciam escravizados. Na verdade, esses negros e negras escravizados eram pessoas livres, com sua organização social. Não eram pessoas marginalizadas, não eram pobres ou destituídos de cultura”, sinaliza a professora. 

 

Segundo ela, o combate ao racismo passa pela escola, pela universidade, por todos os espaços democráticos. “Precisamos conhecer a história, debater, dar lugar de fala ao negro. Precisamos de políticas públicas. A escravidão acabou há 130 anos, mas como esse negro se emancipou? Foi alforriado sem formação, sem acesso à educação, sem propriedade privada”, argumenta. “O protagonista da luta contra o preconceito somos nós, negros, que vivemos e sentimos tudo isso na pele, porém a luta é de todos”, pondera.

Acesso a direitos e invisibilidade social

Para o Chef Leonardo Alcântara, o negro vive muitos desafios e um deles é o estereótipo racial. “Uma coisa que me incomoda muito, por exemplo, é essa ambiguação de moreno ao invés de negro. Quando você denomina alguém como moreno, você está fazendo um processo de embranquecimento. Você está dizendo: ‘Você não é negro propriamente dito’. Então, eu renego totalmente esse rótulo. Ninguém vai chamar ninguém pela raça que for, mas se forem me chamar, me chamem pela raça correta, no mínimo. Eu faço questão de ser negro. Não aceito uma qualificação que visa a esbranquiçar a minha negritude”, afirma Alcântara. 

Elise Bozzetto

Conforme o Chef, o racismo no Brasil é bem estruturado, quase que institucional. “Apesar de já haver leis, um estado democrático de Direito, sabemos que a população negra não tem acesso a esses direitos, não são iguais para todos. A gente tem diariamente o genocídio da população negra. Negros que morrem assassinados, sofrem repressão da polícia, do tráfico, são vítimas de um país de três séculos de escravidão”, analisa.

 

O enfrentamento do racismo, para Alcântara, parte da consciência de que você é negro. “O racismo gera ranhuras, feridas muito grandes, isso mexe muito com a nossa personalidade. É um processo de você se assumir. Nós, os negros, enfrentamos um processo de autoafirmação que é muito dolorido. Mas há de se enfrentar, precisamos dizer um para o outro: ‘Não tem nada de errado com seu cabelo. Não tem nada de errado com a sua cor. Você pode ter seu espaço de fala, sua posição. Você é lindo’. O racismo nos dá um complexo de inferioridade muito grande pois ele é uma imposição muito forte. Você vai no mercado e vê que o segurança está olhando pra ti. A solidão da mulher negra, por exemplo, são muitas as questões que envolvem a condição da cor da pele. Nós somos um país mestiço, mas onde está o negro? A gente sempre defende que o Brasil vive uma democracia racial, mas você vai nos espaços e o negro não está presente”, questiona. 

 

Alcântara acredita na construção de uma democracia racial “A partir do momento em que a gente consiga entender que existe um processo violento que começa desde a escravidão contra o povo negro, desde a diáspora africana até os dias de hoje, entender que nós precisamos criar meios, políticas e debates para que essas ranhuras e feridas diminuam e que a gente saiba o sentido realmente de igualdade, de democracia racial”.

O Rio Grande do Sul não é branco

Conforme a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD) da Univates Karen Pires, entre 1502 e 1860 mais de 9,5 milhões de africanos foram sequestrados para as Américas, e o Brasil se destacava como o maior importador de homens pretos. “A história da abolição no Brasil se diferenciou do restante do mundo em função do tempo de duração”, analisa Karen.

 

Karen trabalha no Laboratório de Arqueologia da Univates e está se debruçando na investigação da história do negro do Vale do Taquari. Pesquisas estão sendo desenvolvidas no Laboratório, vinculadas ao projeto “Arqueologia, História Ambiental e Etno-História do Rio Grande do Sul”. “Aos poucos, está sendo descortinada outra história da atual região do Vale do Taquari, para além da história da imigração europeia”, analisa a historiadora. 

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A invisibilidade histórica do negro não é exclusividade do Vale do Taquari. Em todo o Rio Grande do Sul, houve um silenciamento histórico sobre essa população, conforme o historiador, arqueólogo e pesquisador da história do movimento negro do Museu Treze de Maio, de Santa Maria, professor doutor João Heitor Silva Macedo. “O Rio Grande do Sul é visto como uma região europeia, onde predominam alemães e italianos. Essa é a história que foi escrita e passada de geração para geração. Hoje pesquisadores querem colocar a história do negro no seu devido lugar: na historiografia. As populações negras não surgiram pós-abolição, elas sempre estiveram aqui. Mas ninguém viu elas do ponto de vista social e histórico, elas estavam e estão ainda invisíveis, marginalizadas. Precisamos contar essa história”, defende.

Uma cultura brasileira repleta de diversidade

Elise Bozzetto

O tecnólogo em logística Rodrigo Ribeiro de Oliveira faz parte da Comunidade Unidos de Lajeado, na qual atua como tesoureiro. Com sede no bairro Planalto, em Lajeado, a associação reúne 31 famílias negras. Para ele, as manifestações culturais do povo negro nasceram num berço de diversidade e pluralidade, o que torna a cultura tão rica e, ao mesmo tempo, mostra a imposição nefasta que o Brasil fez a essas comunidades. “Quando chegaram aqui, os povos africanos sequestrados foram separados não somente da suas famílias, mas também de suas comunidades. Foram divididos para não manterem sua cultura, para não terem laços. Então, todas essas diferentes culturas, cada uma com suas diferentes manifestações, rituais, música e arte, se fundiram. Por isso encontramos tanta diversidade”, explica Oliveira.

Na Unidos de Lajeado, o grupo executa diferentes ritos religiosos, respeitando a tradição de cada família, fazem danças voltadas aos Orixás, cantam, dançam capoeira. Além disso, a associação recebe visitas de escolas e grupos e falam sobre a história e a cultura da comunidade. A história da cultura dessas comunidades está registrada na memória e é passada de geração em geração pela oralidade. “Estamos em contato com pesquisadores para analisarem nossa sede, onde já foram encontrados diversos utensílios e objetos que contam um pouco da nossa história”, comenta Oliveira. O agendamento de visitas deve ser feito pelo e-mail unidos.de.lajeado@gmail.com

 

Olavo José da Silva, mais conhecido como “Tio Olavo”, tem 71 anos e faz parte da comunidade. Para ele, não existe separação pela etnia. “Existem pessoas boas em tudo que é raça, pessoas ruins em tudo que é raça. Pessoas honestas, caloteiras. Não é a raça que determina o ser humano”. Para ele, a palavra-chave para um país melhor é o respeito. “A gente precisa se importar com o outro, respeitar o outro. É preciso ter mais amor ao próximo”, defende.

Um assunto que não deve ficar fora de pauta

“De novo esse assunto? Sim, de novo porque ele aparece quase sempre com máscaras. Uma delas é dizer que aqui não existe racismo, pois somos um país mestiço. Sem dúvida, muitos de nós carregam a mistura racial e isso, obviamente, não é um problema ou vergonha. No entanto, na minha opinião, esse discurso é letal para a luta étnico-racial, pois geralmente arremata qualquer discussão sobre racismo”. A afirmação é da professora doutora Rosane Cardoso, do Centro de Ciências Humanas e Sociais.

Para Rosane, frases como “Eu não sou racista. Minha bisavó (tataravó etc.) era negra”, ou “Tenho amigos negros”, são alegações que partem do princípio de que atos racistas podem ser relevados por uma origem que só aparece quando convém. “Além disso, o discurso da mestiçagem branqueia o país, como a classe dominante sempre desejou. Não estou negando a mescla étnica. Estou me referindo ao uso dela. A gente precisa estar atento para falas que amenizam a escravidão e o racismo. Se somos um país mestiço e, por isso, um país que não discrimina, então negros e negras (e não estou falando de tom de pele) que denunciam racismo podem ser vistos como equivocados, como pessoas que brigam por um problema já resolvido. É só mais uma balbúrdia”, defende a docente.

 

Rosane argumenta que ser preto no nosso país é um problema de emprego, de saúde, de pobreza, de autoestima. “Portanto, para mim, não existe pessoa negra que possa dizer que nunca sofreu racismo ou que só ela sofreu esse mal, pois não se trata de mim ou de ti, mas de um grupo secularmente perseguido. A discriminação atinge a todos. E, quando ela ocorre, o açoite social volta a estalar e nenhum opressor lembra que carrega, eventualmente, sangue negro nas veias”, expõe ela.