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Arte e pós-humanismo pelos olhos de Lúcia Santaella

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Uma das principais divulgadoras da semiótica no Brasil, com mais de 40 livros publicados, conduziu o diálogo de abertura do IV Simpósio Internacional Diálogos na Contemporaneidade da Univates, realizado no mês de setembro. Em sua fala, a pós-doutora Lúcia Santaella abordou a relação entre a arte e o pós-humanismo – conceito originário dos campos da ficção científica, futurologia, arte contemporânea e filosofia, que estuda a condição de uma pessoa ou entidade para além do humano.

Quer saber mais sobre o assunto? Confira a entrevista exclusiva concedida por Lúcia Santaella ao Jornal da Univates.

- De que forma a senhora relaciona a arte ao pós-humanismo?

Os artistas foram os primeiros a se dar conta dessa transformação do humano, e isso começou no corpo. A arte, desde o início do século XX, começou a tomar o próprio corpo do artista como suporte. Isso foi preparando o terreno para que nos anos 1970, com o body art, e nos meados dos anos 1980, começo dos anos 1990, os artistas começassem a falar e produzir obras dentro do contexto do pós-humano. Então, a condição pós-humana é essa condição de expansão, tanto da parte física quanto da parte mental, e ambas não se separam. Há a expansão do humano nas tecnologias, as interfaces do humano com as tecnologias, em todos os níveis, desde o nível da expansão da inteligência, por meio das redes, até o nível de transformações do próprio corpo.

- Em sua tese de “ecologia pluralista” da comunicação e da cultura, a senhora afirma que vivemos em um mundo pluralista e que a principal sinalizadora disso tem sido a arte contemporânea. Pode explicar melhor esse conceito e como ele se aplica em outras esferas de nossa vida?

Quando escrevi esse livro e dei esse título a ele, o livro intitulado “Ecologia Pluralista”, na época não tinha me dado conta de quantos autores defendem a mesma tese, de que nós vivemos em um mundo diversificado, plural, heterogêneo. Essa ideia começou a brotar já nos anos 1970 e 1980, com a pós-modernidade, que hoje Bauman, figura reconhecidíssima, chama de modernidade líquida. Então, o pluralismo é uma consequência dessa diversidade. Bom, eu trabalho com as áreas da comunicação e da arte. Aliás, várias vezes já repeti nos meus textos que a arte é o carro-chefe do meu pensamento. Ou seja, o artista é que tem a cifra do presente e o farol para o futuro. Então, eu fico muito próxima do trabalho dos artistas, tenho muita curiosidade pelo que eles fazem, porque eles é que são capazes de ler o nosso presente. A arte contemporânea é até difícil de definir, pois ela é de uma diversidade absolutamente radical. Hoje, há arte que se faz até com pó, com brisa, então não há um suporte, não há uma técnica que seja predeterminada como sendo artística. Então, o artista tem à sua disposição uma variedade enorme de possibilidades e ele escolhe em função daquilo que mais o atrai e, provavelmente, o tipo de técnica, suporte ou tecnologia a que ele mais se adapta, com o qual ele trabalha melhor. O artista está livre para escolher.

- O filósofo Deleuze afirma que as máquinas são sempre sociais antes de serem técnicas. Observando o contexto social em que vivemos, que tipo de máquinas e tecnologias pode surgir muito em breve?

Então, Deleuze e Guattari… coincidentemente, estou agora com meu grupo de estudos trabalhando mais intensamente com Deleuze. A noção deles de máquina não é uma noção instrumental nem técnica, tanto é que eles falam em máquinas desejantes, então, é um modo de operacionalização… uma energia que se movimenta e que se multiplica. O conceito de multiplicidade é um conceito fundamental em Deleuze e Guattari. Se a gente parte deles, a gente não pode ver a máquina como um conceito simplesmente técnico ou tecnológico. Por isso, Deleuze e Guattari permitem que a gente perceba as conexões entre humano e máquina de maneira bastante distinta daquelas que separam o humano como um ser biológico e a tecnologia como um universo puramente “maquínico” e instrumental. Mesmo não operando em um paradigma deleuziano, que, aliás, aprecio muito, eu já tenho tendência a ver uma não separação. Não existe uma cisão entre aquilo que a gente chama de tecnologia e aquilo que a gente chama de biologia. A biologia humana já é por princípio uma biologia que tende para a expansão em tecnologias. O homo faber, o homo lubens, o homo sapiens. O ser humano é um ser em transformação, e essa transformação é bastante impulsionada pela transformação tecnológica.

- Algumas teorias sobre a fotografia contemporânea afirmam que ela pode estar intimamente ligada a uma crise da memória, já que a fotografia parece ter se tornado uma forma de “salvar” os instantes para depois vivê-los. Pensando no paradigma pós-fotográfico que vivemos, quando as imagens se tornam derivadas de combinações numéricas, é possível pensar que essa tecnologia pode ser capaz de alterar o funcionamento biológico do nosso corpo?

Sim. Vamos começar do início a questão do problema da memória. Existe uma memória biológica, que é individual e singular. Ou seja, aquela memória que é retida no cérebro de cada indivíduo. E existe uma memória cultural, social, coletiva. Então, essa memória coletiva precisa ter um suporte que vá além do cérebro individual, porque o cérebro individual é mortal. Conclusão: muito cedo o ser humano percebe a fragilidade da memória puramente cerebral. Já iniciou nas grutas, nas cavernas, isso de colocar a memória para fora do corpo, e essa memória fora do corpo vai crescendo. Com a Revolução Industrial, que é o surgimento da fotografia, essa memória começa a adquirir um crescimento exponencial, que a gente está vivendo agora. Aliás, essa semana estou escrevendo um texto aqui para o Rio Grande do Sul, o qual me pediram para uma revista, que vai ser chamar “A Grande Aceleração”, que é o nome que está sendo dado agora para essa transformação acelerada do social, transformação planetária. Inclusive, a aceleração do capitalismo, tudo isso que vem da Revolução Industrial, mas se acelera muito a partir da Segunda Guerra Mundial. Claro que, quando surge um equipamento técnico como a fotografia, e depois da fotografia o cinema, depois o rádio, depois a televisão, e agora a Revolução Digital, o que acontece? A memória humana começa a se expandir para fora do corpo. Agora, isso traz uma crise para nossa noção cartesiana do ego, pois essa memória coletiva coloca diante de nós a insignificância da nossa memória individual. E aí o ser humano fica desconfortável, porque a gente ainda sonha com essa ilusão de que a memória individual tem um potencial que ela não pode ter mais.

Agora, você falou da fotografia expandida. Hoje vivemos uma era de fotografia expandida, cinema expandido, vídeo expandido. Estou agora mesmo organizando um livro sobre isso: novas formas do audiovisual. Com a computação, o computador é uma metamídia. Não é como a televisão, que absorve e traduz. O teatro absorve, mas o computador, na morfogênese da linguagem, já mistura as linguagens: som, imagem, verbo, tudo se mistura no computador. Aquelas velhas fronteiras que a gente conhecia não deixam de existir, pois eu ainda tenho fotografia que não é expandida, eu ainda tenho cinema que não é expandido – graças a Deus, porque adoro ir ao cinema e ver um filme, mas hoje se fala muito em cinema expandido. O cinema-arte, o cinema de exposição. É a mesma coisa com o vídeo, já se fala em vídeo expandido. Aliás, Arlindo Machado diz que o vídeo sempre foi expandido. Então, imagine o que está acontecendo com a memória humana agora. Ela não é mais só humana. A grande tendência hoje não é mais se falar em pós-humano, mas em não humano. O não humano no sentido de que todas essas fronteiras que a gente estabelecia: o que é humano, o que é animal, a soberania do humano sobre o resto da natureza, sobre os outros reinos da natureza, tudo isso está desaparecendo agora.

- De que forma a senhora considera que os meios digitais de comunicação dão espaço para a expressão da natureza híbrida da mente humana? Eles podem estar colaborando para a reorganização do funcionamento do cérebro e dos pensamentos humanos, por exemplo?

Sem dúvida nenhuma. Hoje o cérebro humano não é mais só biológico. Hoje a internet, e agora a big data, a internet das coisas… o cérebro hoje é uma realidade completamente expansiva. O cérebro coletivo, quantos autores já falaram sobre isso? Não apenas a mente coletiva, mas além de coletivo, essas separações tão reconfortantes que a gente tinha: ali é o vegetal, ali é o animal, aqui é o humano, elas tendem a desaparecer. Principalmente porque o ser humano, a partir dos anos 1950, quando se deu a descoberta da dupla hélice do DNA, tem diante de si a possibilidade de manipular a vida. Então, qual é o limite da vida hoje? Todas aquelas separações de vida e morte, masculino e feminino, natureza e cultura, estão se dissolvendo.

Esta entrevista faz parte da edição de novembro do Jornal Univates. Confira aqui a edição completa.

Entrevista: Tuane Eggers

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