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Somos todos doentes mentais?

Postado em 09/10/2013 14h31min

Por Tuane Eggers

A pergunta provocativa do título pode gerar estranheza. Será que somos todos doentes mentais? Ao menos é isso que parece sugerir a última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), criado pela Associação Americana de Psiquiatria, que lista diferentes categorias de transtornos mentais e seus respectivos critérios para diagnosticá-los. Sua versão atualizada – DSM-V – foi lançada em maio deste ano e, desde então, vem causando polêmica entre os profissionais da área da saúde mental.

Nessa edição, são exibidas mais de 300 patologias. Entre elas, algumas causam mais estranheza, como é o caso do distúrbio de hoarding, que se caracteriza pela dificuldade persistente de uma pessoa para se desfazer de um objeto, independentemente de seu valor real. Outra patologia citada é o transtorno disfórico pré-menstrual, que consiste nos sintomas da TPM mais severos. O transtorno de compulsão alimentar periódica também é uma das patologias citadas pelo manual. Define-se quando uma pessoa consome quantidades excessivas de comida em um período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses ou mais.

Talvez o exemplo mais emblemático dessa edição seja a forma de olhar para o luto. O DSM-V propõe que sejam diagnosticados como depressivos aqueles que levarem consigo a tristeza de perder alguém por mais de duas semanas. O sentimento de perda, que deveria ser elaborado ao longo do tempo – e no tempo de cada um –, passaria a ser silenciado por medicamentos.

A psicóloga Viviane Rodrigues, que atua em uma clínica e leciona no curso de Psicologia da Univates, utiliza o DSM como um auxiliar na realização de diagnósticos, que considera importantes para poder pensar nas possibilidades de tratamento e desenvolvimento de pesquisas, além de auxiliar na comunicação. “O objetivo não é patologizar de uma forma generalizada; obviamente devemos considerar a subjetividade daquele sujeito. O objetivo é propor o melhor tratamento para quem apresenta um intenso sofrimento psíquico”, comenta.

Mesmo assim, Viviane considera essencial o posicionamento crítico dos profissionais em algumas questões relacionadas ao guia. “A questão sobre o processo de luto tem sido amplamente discutida e questionada, principalmente pelo luto ser considerado um processo bem singular, em que cada indivíduo irá reagir de uma forma, no seu tempo”, explica. A professora ressalta que, na versão anterior do DSM, as pessoas que estavam de luto não poderiam ser diagnosticadas, o que também acabava gerando problema em pacientes que estavam com depressão e não recebiam o tratamento adequado. “Assim, uma pessoa que está de luto por ao menos duas semanas pode ser diagnosticada com depressão. No lugar da regra, há duas notas: uma pedindo cautela para diferenciar o luto normal do diagnóstico de uma doença mental, e a outra dizendo que a depressão e o luto podem coexistir”, afirma Viviane.

Já a psicóloga Suzana Feldens Schwertner, que também leciona no curso de Psicologia, não utiliza o manual como seu guia na clínica, mas considera seu uso importante para diagnosticar algumas patologias. O problema, segundo ela, é quando se afirma que somente ele tem a resposta e diz tudo sobre uma pessoa. “Essa nova versão está sendo polêmica por caracterizar como transtornos uma série de comportamentos e formas de ser no mundo que são consideradas tranquilas e que muita gente tem”, explica.

Para Suzana, cada vez mais se percebe que nenhum profissional da área da saúde consegue trabalhar sozinho, e que cuidar de um paciente significa olhar para ele de maneira integral. “Significa olhar para ele na relação dele com ele mesmo, sua história de vida, as pessoas que o rodeiam, suas possibilidades de trabalho, de convivência social, os espaços de lazer a que ele tem direito, os espaços coletivos. O que estamos vendo hoje é que as pessoas estão buscando muitas causas nas manifestações, e talvez sejam justamente estas: olhem para nós não como um número, não como uma estatística, não como um diagnóstico, mas como algo maior do que isso”, salienta.

O farmacêutico e coordenador do curso de Farmácia da Univates, professor Luís César de Castro, acredita que questões importantes devem ser observadas nesse novo guia. “Ampliamos o números de pessoas 'doentes mentais' sem que, na verdade, tenhamos consolidada a ideia de que realmente elas o são, o que significa que todos nós temos uma problemática psiquiátrica, e que todos nós somos enquadrados nesse novo documento”, alerta.

Diante disso, fica a recorrente pergunta: haveria um interesse por parte da indústria farmacêutica em disseminar certas doenças? De acordo com o professor, a indústria não deveria ter esse pensamento. “Entretanto, essa é uma opinião que não é somente minha, mas também compartilhada entre colegas: a indústria farmacêutica não possui tanta bondade em sua visão de trabalho. Ela entende as situações patológicas como oportunidades de negócios”, analisa Castro.

 

Dica de filme

Assim como ocorre com diversos temas polêmicos, a questão do interesse da indústria farmacêutica também é trabalhada pelo cinema. E a indicação do professor Luís César de Castro é “O Jardineiro Fiel”, filme dirigido por Fernando Meirelles. Segundo ele, a história aborda uma face real, imoral e nociva da indústria farmacêutica. “Nós vivemos em um momento em que medicamos tudo: tomamos remédio para emagrecer, para engordar, para ir ao banheiro, para sorrir, para chorar, para acordar, para dormir e até para amar. Essa é uma geração que busca em uma pílula a solução dos seus problemas. E por trás disso existe uma indústria bem disposta a oferecer essas pílulas. Entretanto, elas nem sempre são necessárias – e digo que, muitas vezes, elas não são necessárias”, completa o professor.

 

Texto: Tuane Eggers

 

ESTA MATÉRIA INTEGRA O JORNAL DA UNIVATES, EDIÇÃO DE SETEMBRO DE 2013, QUE PODE SER CONFERIDA NESTE LINK.

Ana Paula Vieira Labres

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