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Quando o prazer deixa de ser saudável

Postado em 20/06/2017 08h42min

Por Nicole Morás

Você já imaginou viver sem oxigênio? Para quem é adicto – termo científico para pessoas com um determinado vício/adicção –, podemos dizer que a sensação de dependência em relação a alguma substância ou comportamento é psicologicamente semelhante. Claro, a grande diferença fica em o ar que respiramos não ser prejudicial ao nosso organismo nem às nossas relações sociais. O vício, por outro lado, afeta negativamente a nossa saúde física e mental e todo o nosso entorno. Mas, afinal, o que causa um vício?

De acordo com o psiquiatra e professor do curso de Medicina Flávio Shansis, vivemos em uma sociedade adicta. “Essa sociedade do pós-moderno líquido gera permanentemente condições para que estejamos sozinhos, o que nos predispõe a comportamentos aditivos”, analisa ele, acrescentando que, além dos vícios tradicionais, como em álcool e drogas, há também vícios modernos, como a adicção em jogos e internet.

Shansis afirma que é difícil delimitar quando um comportamento sugere que o usuário seja considerado adicto. “É fácil perceber os extremos, mas e o que está no meio?”, questiona ele, acrescentando que é necessário observar a importância e a quantidade de tempo empregados em determinada atividade para que seja considerada parte de um comportamento aditivo. “Quando a pessoa apresenta monotonia de um comportamento, começa-se a configurar o vício, ou seja, quando o foco da vida da pessoa passa a ser o que a vicia”, afirma ele.

Biologicamente, o vício é explicado por uma atividade mais intensa na área de recompensa do cérebro, quando há maior produção de dopamina — um neurotransmissor associado ao sentimento de prazer. A prática de exercícios físicos melhora o humor e contribui para a liberação desses neurotransmissores associados ao prazer, o que pode ser uma alternativa para quem busca tratamento para algum tipo de vício. “Por isso não é de se estranhar que haja muitos atletas que eram adictos anteriormente. Há quem seja viciado em exercício físico, mas, mesmo que praticar esportes seja saudável, não dá para se dizer que existe um vício saudável, pois, quando passou a ser vício, deixou de ser saudável”, relaciona o psiquiatra.

Por ser uma questão biológica, pode haver maior predisposição ao vício por questões de hereditariedade. “O que dizemos é que há maior vulnerabilidade biológica, mas não se pode falar em determinismo. Ou seja, filhos de adictos não serão, necessariamente, pessoas que irão desenvolver algum tipo de vício, mas eles são mais suscetíveis. E, talvez, mais importante do que isso, seja necessário atentar para os transtornos de humor como depressão e bipolaridade, que geralmente estão associados a comportamentos abusivos. Por isso, ao se tratar a doença de base é mais fácil tratar o vício”, pontua Shansis.

Físico x Psicológico
De acordo com o professor Flávio Shansis, não há mais diferença entre vício físico e psicológico, uma vez que ambos desencadeiam reações químicas no organismo e um retroalimenta o outro.

Tem cura?
“Não sei se é possível falar em cura, mas há algumas questões que contribuem para isso. Talvez o que precisamos é ter expectativas menores, considerando uma redução de danos, por exemplo”, defende o psiquiatra. Para Shansis, o processo de cura passa por algumas etapas:
1 - O adicto precisa reconhecer o vício ou que existe uma dependência em relação a um determinado assunto, comportamento ou substância.
2 - Buscar tratamento. Deve-se recorrer a tratamentos de saúde mental.
3 - Considerar o tratamento farmacológico como uma alternativa.

Segundo o professor, o sucesso do tratamento depende de várias abordagens, dando um enfoque multidisciplinar, farmacológico e não farmacológico. Além disso, é importante envolver a família e os amigos e participar de grupos de apoio pode ser uma boa alternativa.

Transtornos aditivos e o DSM-5
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) é um guia de referência feito pela Associação Americana de Psiquiatria. Nele os transtornos aditivos, como jogos, e os transtornos relacionados a substâncias químicas ganham uma seção especial. O DSM-5 afirma que “as evidências [mostram] que os comportamentos de jogo ativam sistemas de recompensa semelhantes aos ativados por drogas de abuso e produzem alguns sintomas comportamentais que podem ser comparados aos produzidos pelos transtornos por uso de substância”.
Inicialmente, o DSM-V divide os onze critérios diagnósticos em quatro categorias, sendo elas: baixo controle; deterioração social; uso arriscado; e critérios farmacológicos. Confira o que é e o que compreende cada uma destas categorias:

Deterioração social
Relacionado aos prejuízos decorrentes do uso de substância nas mais diversas esferas sociais e nas funções que o usuário desempenha na sociedade:
- uso recorrente da substância, resultando no fracasso em desempenhar papéis importantes no trabalho, na escola ou em casa;
- uso contínuo da substância, apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados por seus efeitos;
- importantes atividades sociais, profissionais ou recreacionais são abandonadas ou reduzidas em virtude do uso da substância.

Critérios farmacológicos
Tratam-se de alterações ou adaptações no funcionamento do organismo que ocorrem diante do uso continuado de uma substância:
- a tolerância é sinalizada quando uma dose acentuadamente maior da substância é necessária para obter o efeito desejado ou quando um efeito acentuadamente reduzido é obtido após o consumo da dose habitual;
- abstinência é uma síndrome que ocorre quando as concentrações de uma substância no sangue e nos tecidos diminuem em um indivíduo que manteve uso intenso dessa substância. Após a síndrome de abstinência, o indivíduo tende a consumir a substância para aliviar os sintomas da abstinência.

Baixo controle
Diz respeito à capacidade de controle do usuário. Inclui:
- a substância é frequentemente consumida em maiores quantidades ou por um período mais longo do que o pretendido;
- existe um desejo persistente ou esforços malsucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso da substância;
- muito tempo é gasto em atividades necessárias para a obtenção da substância, na utilização dela ou na recuperação de seus efeitos;
- fissura ou um forte desejo ou necessidade de usar a substância.

Uso arriscado
Refere-se ao uso de substâncias, lícitas ou não, que carregam em si particularidades e contingências de risco:
- uso recorrente da substância em situações nas quais isso representa perigo para a integridade física;
- o uso da substância é mantido apesar da consciência de ter um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado pela substância.

Diferentes vícios
O termo adicção geralmente é associado à dependência ou uso abusivo de substâncias químicas — que podem ser tanto ilícitas quanto legalizadas, como o álcool ou medicamentos. Porém, atividades como sexo, exercício físico, jogos e compras também podem se constituir em vício quando praticados compulsivamente. O DSM-5 afirma que esses “padrões comportamentais de excesso, como jogo pela internet, também foram descritos, mas as pesquisas sobre esta e outras síndromes comportamentais são menos claras. Portanto, grupos de comportamentos repetitivos, por vezes denominados adições comportamentais, com subcategorias como ‘adição sexual’, ‘adição por exercício’ ou ‘adição por compras’, não estão inclusos” no manual, já que são necessárias mais pesquisas.

Vício em tecnologia
De acordo com um estudo internacional liderado por Matthias Johannes Koepp, a quantidade de dopamina liberada nos centros de recompensa do cérebro quando uma pessoa joga equivale à mesma quantidade do neurotransmissor liberada pelo uso de anfetaminas. No Rio Grande do Sul, o Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (Geat) busca compreender, desde 2006, como o crescente uso da internet e os jogos eletrônicos têm influenciado a saúde mental e física de crianças e adolescentes. Em entrevista à Revista Univates, os mestres em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Daniel Spritzer e Felipe Picon, fundador e coordenador do Geat e vice-coordenador do Geat, respectivamente, explicam que a dependência de tecnologia propriamente dita ainda não é reconhecida oficialmente pelos manuais diagnósticos como um transtorno psiquiátrico formal. “Essa condição ainda está sendo pesquisada para ser validada mundialmente. É importante mencionar essa situação em primeiro lugar, pois significa que ainda não há um consenso sobre o que é, de fato, a dependência de tecnologia”, ressaltam eles.

Spritzer e Picon esclarecem que os critérios diagnósticos que existem hoje são específicos para a dependência de jogos eletrônicos, não existindo ainda critérios formalizados para classificar a adicção em outros dispositivos tecnológicos. “O chamado Transtorno de Jogo pela Internet (Internet Gaming Disorder, em inglês) encontra-se na categoria III do DSM-5 (categoria que inclui condições clínicas que merecem mais estudos) e é caracterizado por prejuízo significativo em diversas áreas da vida do indivíduo em decorrência do uso excessivo de jogos eletrônicos, ocorrendo por um período superior a 12 meses e com a presença de pelo menos cinco critérios (ver box). É importante mencionar essa formalidade do diagnóstico para termos claro que ainda se trata de uma situação clínica muito nova e sobre a qual ainda há intenso debate”, explicam eles.

Quando se preocupar que o uso de tecnologias tenha se tornado um vício?
Para os pesquisadores do Geat, pensando clinicamente em um indivíduo específico, os familiares e amigos devem começar a se preocupar que um “vício” pode estar se desenvolvendo quando a pessoa em questão está apresentando prejuízos em alguma área de sua vida (adolescente que começa a ir mal na escola, criança que começa a deixar de brincar com amigos para apenas jogar sozinho ou adulto que começa a ter problemas na faculdade ou no trabalho em decorrência do uso excessivo de algum dispositivo tecnológico).

Tecnologia e estudos Conforme Spritzer e Picon, estudar é uma das atividades humanas mais complexas e sofisticadas, o que demanda atenção, disposição e disciplina por parte do indivíduo. Dessa forma, o “vício” em jogos (especificamente, pois é a modalidade tecnológica com a qual esse tipo de prejuízo mais ocorre) prejudica os estudos na medida em que os pensamentos da pessoa estão muito mais voltados para o jogos — prejudicando a possibilidade de se concentrar no estudo, desviando o pensamento, e principalmente em relação ao tempo necessário para se estudar. “Se a pessoa está jogando 4-8 horas por dia, acaba não sobrando muito tempo para que o estudo realmente aconteça. Nessa situação, é uma questão de estar mais tempo jogando do que fazendo qualquer outra coisa e, então, o estudo simplesmente não ocorre”, analisam. Segundo os pesquisadores, alguns meninos que participam da pesquisa do grupo relataram perda de interesse muito intensa em relação a qualquer assunto relacionado ao aprendizado escolar. “Eles declaram que não acham graça em nada do colégio e que o ritmo do estudo é muito lento — contrário do que ocorre durante o uso dos jogos quando eles obtêm altas ‘doses’ de prazer. Essa diferença de forma e velocidade é o que vem fazendo diversos grupos de pesquisa em educação, ao redor do mundo, voltarem sua atenção para novas maneiras de ensinar as crianças das novas gerações, já que fora da escola elas estão constantemente imersas em inúmeras mídias muitas vezes mais atraentes do que as formas tradicionais de ensino/aprendizado”, finalizam eles.

Critérios diagnósticos do Transtorno de Jogo pela Internet
1 - Preocupação com jogos pela internet (o indivíduo pensa na partida anterior do jogo ou antecipa a próxima partida; o jogo pela internet torna-se a atividade dominante na vida diária).
2 - Sintomas de abstinência (irritabilidade, ansiedade ou tristeza, mas não há sinais físicos de abstinência farmacológica) quando os jogos pela internet são retirados.
3 - Tolerância – a necessidade de passar quantidades crescentes de tempo envolvido nos jogos pela internet.
4 - Tentativas fracassadas de controlar a participação nos jogos pela internet.
5 - Perda de interesse por passatempos e divertimentos anteriores em consequência dos, e com a exceção dos, jogos pela internet.
6 - Uso excessivo continuado de jogos pela internet apesar do conhecimento dos problemas psicossociais.
7 - Enganar membros da família, terapeutas ou outras pessoas em relação à quantidade de jogo pela internet.
8 - Uso de jogos pela internet pela internet para evitar ou aliviar o humor negativo (por exemplo, sentimentos de desamparo, culpa, ansiedade).
9 - Colocar em risco ou perder um relacionamento, emprego ou oportunidade educacional ou de carreira significativa devido à participação em jogos pela internet.

Esta matéria faz parte da edição nº 4 da Revista Univates. Confira a versão digital aqui

Texto: Nicole Morás

Prof. Flávio Shansis

Artur Dullius

Dependência de tecnologia propriamente dita ainda não é reconhecida oficialmente pelos manuais diagnósticos

Nicole Morás

Circuito de recompensa

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