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Gênero, sexualidade e corpo: a transdisciplinaridade do ser humano

Postado em 27/01/2017 10h44min

Por Elise Bozzetto

Para a biologia clássica, o que determina o sexo de uma pessoa são seus órgãos reprodutivos. Um órgão reprodutivo, biologicamente, não define o comportamento masculino ou feminino das pessoas: o que faz isso é a cultura. A construção social no ocidente nos define dentro dos gêneros masculino ou feminino. Cada cultura tem um “padrão” construído atribuído a esses “papéis”.

Qualidades de feminino são diferentes no Brasil e na Dinamarca, por exemplo, assim como ser masculino no Brasil é diferente de ser masculino no Japão. Ser masculino ou feminino, homem ou mulher, é uma questão produzida nas relações de gênero, afinal, o gênero só é construído nas relações e interações e toma materialidades nas expressões corporais e da sexualidade de diferentes homens e mulheres.

Para Judith Butler, filósofa norte-americana sempre citada nos estudos de gênero e sexualidade, o gênero preconiza a existência do sujeito antes mesmo do seu nascimento, pois vai se construindo uma lógica que faz com que a primeira pergunta que façamos a uma gestante é “Qual é o sexo do bebê?”, e a partir dali materializamos socialmente um menino ou uma menina. Portanto, para a concepção mais contemporânea dos estudos de gênero e sexualidade, não poderíamos definir sexo como biológico e gênero como social. Tanto gênero quanto sexualidade e corpo são produtos de práticas repetidas que nos definem como homens e mulheres. As pessoas que não estão dentro dessa norma do feminino e do masculino, a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT), principalmente as pessoas trans, sofrem preconceitos e violências por transgredirem as regras advindas de uma sociedade machista, patriarcal, homofóbica, lesbofóbica e transfóbica. Por isso, hoje, a universidade abre espaço para essa discussão em busca de direitos humanos e equidade de gênero.

A (in)visibilidade trans: uma história de exclusão
Jandiro Adriano Koch, estudante do curso de História, prefere não relacionar sua identidade a uma definição binária. “As pessoas me chamam de [o] Jandiro, [a] Jandira, [o] Jan, [a] Jan. Todavia, a Língua Portuguesa é uma armadilha, impõe escolhas. Procuro escapar. Nem sempre dá certo”, comenta. Mas, como Jan mesma defende, é uma postura particular. “Cada indivíduo é diferente. A maioria das mulheres trans, por exemplo, prefere ser chamada pelo nome social antecedido ou não pelo artigo no gênero feminino. Atendê-las é uma questão de respeito, pois é assim que elas se reconhecem”, ressalta.

Para Jan, a história de uma pessoa trans é um testemunho de sobrevivência. “A realidade da população trans é muito difícil. O que é de direito garantido a todos, para conseguirmos acessar, muitas vezes, demanda recorrer à esfera do Judiciário. Dentre a população LGBT, as trans são mais vulneráveis, as maiores vítimas de exclusão, pois é o grupo que mais foge da normativa social”, pontua. Jan destaca que se a discriminação é compreendida a partir dos contextos históricos nos quais foi engendrada, fica mais fácil a desconstrução de ideias pré-concebidas. “O processo de exclusão é histórico e pouco se fala sobre o assunto localmente. Pode-se dizer que, regionalmente, há um silenciamento da mídia. Quando o tema ‘transgênero’ é abordado, geralmente é pelo viés de histórias de violência, perspectiva que pouco contribui para a mudança de olhar sobre o diferente. É preciso perceber que, em primeiro lugar, há a exclusão da família. A grande maioria é expulsa de casa. Vários fatores acabam nessa segregação, especialmente convicções morais e religiosas. Uma segunda instância excludente ainda é a escola, em que trans são vítimas constantes de bullying. As agressões físicas ou verbais são tantas, a humilhação é tão constante, que poucos suportam. Por isso temos uma grande evasão escolar. Sem um lar, sem escolaridade, acabam sem empregos formais. O mercado de trabalho dificilmente as contrata. Suas alternativas estão em cargos públicos, mas eles requerem formação. Por isso vemos tantas na prostituição, que se torna estratégia de sobrevivência. Além do estigma, da não adequação à heteronormatividade, essa população acaba rotulada pela atividade de profissional do sexo, que não é vista como profissão no Brasil”, explica Jan.

Quem define quem sou
Para Jan, o que pode contribuir para o acesso a direitos e a diminuição da violência e da exclusão dessa população é a educação. “Precisamos mudar paulatinamente a mentalidade das pessoas e uma das possibilidades é por meio da educação, inclusive o autodidatismo. A literatura, hoje, é uma forma de resistência. Precisamos estudar mais, ler mais, para abrir os horizontes. O debate contínuo sobre a questão de gênero, sempre convidando as pessoas trans para participarem dessa discussão, pode auxiliar na construção de um novo olhar sobre o outro. Perspectiva diferente daquela que, ao longo da história, levou indivíduos investidos de poder a sentenciarem quem éramos. Para o Direito, delinquentes, vagabundos, contraventores. Para a Psiquiatria, éramos doentes mentais. Para a Medicina, enfermos físicos. Para a Religião, pecadores. Nunca tivemos espaço de voz para dizer quem somos”, defende.

Segundo Marina Reidel, coordenadora de Políticas LGBT da Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, uma das formas de combater a violência é trabalhar a conscientização nas escolas. “É um trabalho árduo e de formiguinha. Mas ao poucos podemos abrir a mentalidade da geração que está hoje nas escolas para acolher e respeitar a diversidade. Pensar em políticas públicas de acesso à educação e saúde, de assistência básica à população trans, é necessário. Mas precisamos também pensar de que forma atingir esses objetivos, trabalhando com servidores públicos, professores, profissionais da saúde, da segurança pública, que ainda são acessos muito difíceis ao mundo trans. O preconceito existe pois há falta de conhecimento”, pontua Marina. Para a coordenadora, levar essa discussão para as escolas é importante. “Quando vamos às escolas e trabalhamos questões de gênero, há uma desmistificação, os adolescentes entendem esses espaços. Claro que temos que criminalizar a homofobia, a transfobia e a lesbofobia, mas não é só isso, é preciso também educar”, conclui.

Esta matéria faz parte da edição nº3 da Revista Univates. A versão digital pode ser conferiada aqui.

Texto: Elise Bozzetto

Jan Koch

Elise Bozzetto

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